Como dinamitar uma eleição, versão 2020

“E assim terminou a mais ameaçadora luta pela Presidência dos EUA que alguma vez existiu na história da nação”, lia-se no jornal National Republican em 1877. “Que nunca mais conheçamos outra como esta.”

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Reuters/CARLOS BARRIA

“A agonia chegou ao fim”, anunciou na primeira página o jornal norte-americano National Republican no dia 2 de Março de 1877.

Era a notícia por que todos esperavam há quatro meses, desde que a eleição presidencial de 7 de Novembro de 1876 acabara num perigoso impasse. O candidato do Partido Democrata, Samuel Tilden, tinha recebido mais 254.000 votos do que o seu adversário do Partido Republicano, Rutherford B. Hayes; mas isso não chegava para que fosse confirmado como o próximo Presidente dos EUA. 

A democracia americana caminhava rapidamente para o seu primeiro centenário, e já não era uma novidade que o voto popular — decisivo em tantos sistemas eleitorais por esse mundo democrático fora — era apenas um de vários factores no processo de escolha do Presidente. Importante — e quase sempre decisivo —, mas ainda assim sujeito a confirmação num processo complicado chamado Colégio Eleitoral.

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Primeira página do National Republican, do dia 2 de Março de 1877

Uma década depois de terem saído de uma sangrenta guerra civil que continuava a dividir o país em dois, e no auge da maior crise económica de sempre até essa altura, os Estados Unidos da América estavam, mais uma vez, a caminho do precipício.

No Sul, o fim da escravatura e a entrada dos novos cidadãos negros no processo eleitoral tinham acabado com os privilégios da minoria branca e atirado parte da antiga elite para uma pobreza desconhecida. O mito da “causa perdida” da Confederação tinha dado origem a organizações como o Ku Klux Klan.

No Norte, havia outro mito em construção: a ideia, que ainda hoje subsiste, de que essa parte dos EUA foi um refúgio civilizacional para a população negra nas décadas que se seguiram à guerra civil. Ainda que de forma menos aberta do que no Sul, os negros eram vistos no Norte como uma ameaça à recuperação económica e à própria ideia de civilização, como se percebe pela leitura da imprensa da época: “Quem insiste em entrar onde não é desejado, torna-se um incómodo, e a sua ofensa não é mitigada pela circunstância de ser negro”, escreveu o New York Times, em 1890, sobre um processo judicial que pedia o fim da segregação racial nas escolas.

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Panfletos da campanha eleitoral de 1876

Foi neste contexto que o candidato do Partido Democrata, Samuel Tilden, surgiu como o porta-voz da metade do país que via na emancipação dos negros a principal causa da desgraça económica e da perda dos seus postos de trabalho. E foi no Sul, onde Tilden contava com o apoio de uma minoria branca cada vez mais saudosista dos velhos tempos da escravatura, que a eleição de 1876 entrou num beco sem saída.

Nesse ano, os estados da Florida, Carolina do Sul e Louisiana fizeram algo que nunca tinha sido feito até então. Algo que o actual Presidente dos EUA, Donald Trump, tem tentado repetir, nos últimos dias, para tirar a vitória a Joe Biden.

Para que os 254.000 votos a mais que Tilden recebeu na votação popular significassem alguma coisa, o candidato do Partido Democrata teria de receber os votos do Colégio Eleitoral daqueles três estados. Só com esses 19 votos (mais um do estado do Ohio, por razões diferentes), seria possível que o candidato do Partido Democrata — e do Sul racista — chegasse à Casa Branca.

O bloqueio aconteceu quando a Florida, a Carolina do Sul e o Louisiana não se entenderam sobre o nome do vencedor da eleição presidencial. Cada um desses estados entregou ao Congresso dos EUA dois certificados — um com a vitória de Tilden e outro com a vitória de Hayes. Se Tilden perdesse essa batalha política, perderia também a chave da Casa Branca, por apenas um voto.

E foi isso mesmo que aconteceu, a 2 de Março de 1877, horas antes de a edição do National Republican ter saído para as bancas com o anúncio de que a agonia tinha chegado ao fim.

No final de uma maratona de reuniões e votações, e quando já se ouviam rumores de que os apoiantes de Tilden estavam a caminho de Washington para pôr o seu candidato na Casa Branca nem que fosse à força, o Congresso chegou a um acordo: os votos da Florida, Carolina do Sul e Louisiana iam para o republicano Hayes, e em troca o futuro Presidente dos EUA comprometia-se a deixar a minoria branca no Sul sem controlo federal para dar largas ao sonho de voltar aos tempos antigos do racismo.

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A Comissão Eleitoral durante uma reunião secreta em Washington D.C. para tentar resolver o impasse criado nas eleições de 1876 MPI/Getty Images

Com a saída das tropas federais dos estados do Sul, a campanha de violência e intimidação contra a população negra abriu as portas a um sistema de segregação que perdurou nas leis até 1964, quando o Congresso dos EUA aprovou, a muito custo, a Lei dos Direitos Civis.

É difícil argumentar que as divisões e o racismo desapareceram nos EUA, como que por magia, em 1964. E as consequências do Compromisso de 1877 sentem-se ainda hoje, em cada protesto após um caso de violência policial contra um negro – 143 anos depois de o National Republican ter declarado: “A agonia chegou ao fim”.

“E assim terminou a mais ameaçadora luta pela Presidência que alguma vez existiu na história da nação”, continuou o repórter do National Republican naquele dia 2 de Março 1877, terminando com um desejo que muitos esperam ver repetido dentro de algumas semanas: “Que nunca mais conheçamos outra como esta.”

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