Candeia que vai à frente ilumina duas vezes

Vamos sair disto mais pobres, mais deprimidos, tristes e cansados. Muitos sairão destroçados com a perda de familiares, outros sem emprego, outros tantos sem contratos e muitos sem comida.

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Paulo Pimenta

Algumas das cores do Inverno passado não deixaram de nos acompanhar durante todo o ano, até que, aqui chegados, mesmo junto de um novo Inverno, não se nos afiguram estranhas as manhãs cinzentas que tão vagarosamente se aclaram como se nunca tivessem tido a intenção de despertar. São manhãs que pesam sobre os ombros muito mais do que aquelas outras, as que deixámos para trás do Inverno passado e das quais já não sentimos o cheiro. Este deserto gelado a que fomos cometidos nos últimos meses não serviu para rigorosamente nada, nem para saltos tecnológicos, nem para estarmos mais juntos do que nunca, numa clara contradição com o propósito comercial, não serviu para gostarmos mais uns dos outros. Gostamos exactamente o mesmo, ou ainda menos.

Felizmente que ninguém se atreve a reiterar que vai ficar tudo bem, porque claramente não vai, não está nem nunca esteve; aliás, nunca houve qualquer perspectiva, desde que séria, que o permitisse afirmar. A pandemia veio intensificar a desigualdade com que nos debatemos cada vez que tentamos ser alguém, veio colocar mais obstáculos onde os muros já eram de betão e veio negar o sim onde o não já era quase garantido. As flores, felizmente, não fazem ideia daquilo que se passa no mundo, continuam a desafiar a gravidade e a caminhar em direcção ao sol, brotam pétalas perfumadas sem que nenhum vírus ou vacina se intrometam no seu processo calmo se viver.

Aliás, é mais do que certo que nenhuma flor do mundo quisesse nascer sabendo e compreendendo esse mundo onde cresce, sendo que a constatação da rudeza do que a circunda nunca lhe permitiria a força e a vontade para fazer crescer pétalas perfumadas. Nós, contudo, não temos outra escolha que não a de compreender o mundo que nos rodeia e interpretá-lo e nem sempre é fácil. Em momentos como este, em que somos remetidos a casa depois do trabalho e ao trabalho depois da casa, é fácil agarrarmo-nos aos clássicos do mindfullness e convencermo-nos de que sairemos disto mais fortes, mais solidários e mais compreensivos para com o outro, que nos foi dada, inclusive, uma oportunidade para estarmos connosco e reflectirmos o eu que tanta falta faz nesta sociedade caótica.

Pois bem, a reflexão e a exaltação do eu tem sido a verdadeira religião desde o início do século, não foi preciso a pandemia para que tal acontecesse; aliás, os estudos relacionados com as horas passadas nas redes sociais surgiram bem antes da covid-19 e essa apologia do eu é há muito conhecida.

Vamos sair disto mais pobres, mais deprimidos, tristes e cansados. Muitos sairão destroçados com a perda de familiares, outros sem emprego, outros tantos sem contratos e muitos sem comida. Não é bonito ver o país a encolher os ombros enquanto a direita se alia à extrema-direita, não é saudável tornarmos inquestionáveis todas as decisões que são tomadas acerca da nossa vida. No entanto, candeia que vai à frente ilumina duas vezes e, honestamente, não é preciso muito para perceber que a vida pode continuar, com todas as precauções e cuidados, no cumprimento de todas as medidas sanitárias, mas sem comprometer a vida colectiva, essa que é tão necessária, mas sobretudo imprescindível.

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