África, dois portugueses, duas biclas e o pequeno Yasha — que já vai no reboque

Contam mais de 800 dias a viajar e mais de 14 mil quilómetros a pedalar aos ziguezagues. “África nua e crua”, dizem Rita e Fernando, que falam à Fugas — desde a Costa do Marfim — de uma aventura “enriquecedora” e “transformadora”. E com Yasha, pouco mais de ano e meio de vida.

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Estamos fechados em casa — pandemia e Inverno à porta — e imaginamo-nos na pele deles, na aventura deles, duas bicicletas e um reboque de dois lugares. As paisagens “de cortar a respiração” ao longo da cordilheira do Atlas marroquino e o circuito Tizi N'Tazazert nas montanhas Jebel Sahro, a força imensa das cascatas Kambadaga, na Guiné, e o “maravilhoso” Mali durante a época de chuvas (uma volta completa às Montanhas Bambuque, “tudo pintado de um verde brilhante"). Um ano inteiro a ver as estações a tentarem penetrar nas cores pastel do Sahel. Um mês na região do Ferlo, no interior do Senegal, a seguir o traçado das charretes de burros dos peulh na altura da transumância. “Coisas simples” que fazem o dia-a-dia de Rita Miranda e Fernando Santos — e do pequeno Yasha, um ano e sete meses cumpridos no dia da conversa à distância com a Fugas.

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Rita podia ser arquitecta. Fez o percurso académico “direitinho”. Ainda exerceu um ano e pouco. “Trabalhava que nem um cão. Não tinha vida própria.” Foi em 2012. "'Não dá mais'”, lembra. Parece que foi noutra vida. Fernando, 43 anos, “homem dos sete ofícios”, já fez “muitas coisas na vida”. Formou-se em Gestão do Ambiente e “já estava por tudo”. Call centre, restauração, electricidade, alumínios, vindimas em França, apanha de peras no Cadaval... “Perguntei ‘queres ir comigo?’. E não é que a arquitecta aceitou?!”. “E adorou”, confirma Rita, 36 anos. “Foi uma espécie de clique. Andar a apanhar peras com quarenta e tal graus dava-me imenso prazer. Acabavas o trabalho e tinhas uma vida. Nunca tinha experimentado isso. O trabalho acaba, sais e tens uma vida.”

Já iam para o Cadaval apanhar peras de bicicleta. Já circulavam entre aldeias de bicicleta. Rita aprendeu a andar de bicla já adulta, 27 anos, num parque no centro de Lisboa sem rodinhas, mas com a mãe a amparar as quedas. Tinha o sonho de fazer uma viagem pelo mundo — inspirada nas do livro de João Gonçalo e Valérie. Pedalar Devagar, escreveram eles. O “bichinho” não lhe saía da cabeça. “Todo o dinheiro que ganhava, punha de lado.”

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Sonhador, ele sempre viajara. Ia para fora cá dentro. Todas as “santas férias” partia rumo à “terrinha da avó”, Troviscal, “oito horas para percorrer duzentos quilómetros”. Andou pelos festivais de Verão de Norte a Sul — foi ao primeiro Andanças. Fez o país de lés-a-lés numa carrinha que estacionava para falar do ambiente. “Gosto de ir à procura. Quero é palmilhar.”

Desde que Rita aceitou o convite, foi um sucessivo número de trabalhos: maçãs, Alentejo, vindimas, Bordéus, flores, horticultura. Levaram as bicicletas no avião ("foi essencial, ou não teríamos arranjado os trabalhos que arranjámos"), ficaram três anos e voltaram a pedalar (até Barcelona, onde apanharam um voo para chegarem a tempo do Natal). Em Fevereiro já voltaram a França de bicicleta — cerca de 800 quilómetros. A 29 de Julho de 2016 arrancaram para uma viagem em África, de onde não estão a conseguir sair.

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Fernando é um sonhador. "Gosto de ir à procura. Quero é palmear" Biciculturindo

Fizeram um cálculo. “Low budget ou no budget, conta Fernando. Quatrocentos euros por mês, treze euros e trinta quilómetros por dia. Portugal, Espanha, Marrocos, Mauritânia, Senegal, Cabo Verde, Gâmbia, Guiné-Bissau, Mali, Guiné, Serra Leo, Costa do Marfim com paragens, desvios, atalhos, fugas à época das chuvas, pernoitas em missões católicas e vários trabalhos como moeda de troca para alojamento e alimentação (tanto dá cultivar numa quinta biológica em Marrocos como limpar mato, apanhar folhas de hena ou colher hibisco no Senegal). “É isso que nos faz demorar. Não estamos de passagem. Fizemos 14.600 quilómetros de um percurso que muitos fazem em nove mil ou menos. A nossa maneira de viajar é muito flexível. Andamos a vaguear por todos os países. África nua e crua. Aos ziguezagues”, explica Fernando.

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"É das experiências mais enriquecedoras e transformadoras que algum ser humano pode ter" Biciculturindo

A “bordo” levam “certos confortos” de que não abdicam. Uma cadeira (porque Fernando tem um problema nas costas), tudo o que é necessário para reparação e limpeza das bicicletas, tenda de campismo, cozinha completa (fogão), quarto completo (sacos-cama, colchões e “alguma roupa"), uma farmácia ("isto não é o fim do mundo, existem farmácias"), filtro de água ("que pesa bastante"), computador, máquina fotográfica, gadgets e respectivas baterias e carregadores e painel solar. Basicamente “tudo o que precisas para viver”. “Somos completamente independentes.”

Contam “833 dias” a viajar. Uma interrupção de Dezembro de 2016 a Abril de 2017 (para um tratamento em Portugal) e um pedalar contínuo e contemplativo até aos sete meses e meio da gravidez ("Não foi um acidente, foi mesmo, mesmo planeado. Achámos que era uma excelente ideia ter um filho aqui"), com direito a duas malárias, “ene” infecções urinárias e uma infecção nos rins. “Foi uma gravidez feliz, mas complicada. Há sempre quem diga que sou corajosa e quem diga que sou inconsciente”, anota Rita, que numa primeira tentativa tinha abortado (na Gâmbia). “Engravidei a segunda vez no Sul do Senegal e seguimos com a gravidez até à Costa do Marfim, onde queríamos ter o filho.” Tinha acabado de abrir o hospital de cuidados materno-infantis Mère-enfant, mas as burocracias levaram a melhor e o casal (juntos desde Agosto de 2012, casados “a 21 de Março de 2019") deixou tudo em pausa na Costa do Marfim e voltou a Portugal. Regressaram a África mal Yasha completou dez meses de vida — e virando costas a um coro de pessoas que não entendiam a sua decisão.

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Apenas a pandemia os deteve. Fronteiras fechadas — principalmente a estrangeiros. Nem Burkina Faso, nem Gana, nem Libéria. “Passavas na rua e já não te chamavam branco, mas sim corona. Tivemos medo de não podermos voltar a viajar. Fechámo-nos em casa”, recorda Rita, obrigada a alugar um apartamento (Grand-Bassan, perto de Abidjan), de onde esta família nos fala. A vida ficou mais cara, também. Foram-se os cálculos. No budget. Enquanto Fernando foi à capital tratar mais uma vez do visto, Rita, nacionalidade cabo-verdiana, ficou a tomar conta do Yasha. “A ideia é ficarmos mais dois ou três meses e voltar a Portugal”, diz, algo desanimada. “Mesmo que quiséssemos continuar a viajar, já não dá.”

Bem seguro num dos dois lugares do reboque (compraram um de dois lugares porque “nunca se sabe...”), Yasha já fez uns 200 quilómetros pela região, uma “volta pequenina” ("época de chuvas, delicioso, humidade a oitenta e tal por cento, trinta e tal graus"), uma miniviagem em família ("a primeira de muitas”, como escreveram no Instagram), que também serviu para anotar os prós e contras da aventura a três. A começar pelos negativos, “porque são mais fáceis de assinalar, embora não se sobreponham, de modo algum, aos positivos": a comida (cada vez mais o “pior inimigo” em África), o calor (numa das épocas mais frescas do ano o Yasha desenvolveu “pela milésima vez” uma alergia cutânea), o banho (para ele “banho frio é uma autêntica tortura") e a pressão ("onde quer que ele chegue, fica imediatamente rodeado de dezenas de outras crianças e muitas pessoas a quererem pegar-lhe ao colo").

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Rita "trabalhava que nem um cão. Não tinha vida própria" Biciculturindo

Yasha revela uma capacidade de adaptação “admirável”. “Nunca estranhou as enchentes de crianças e os “muitos colos” (e “são mesmo muitos") nem nenhuma cama ("ou falta dela"). “Entrava e saía, ia à sua vida, perseguia galinhas, cães, gatos e crianças. Como se já conhecesse todos aqueles novos lugares.”

Os pontos positivos: “Quem viaja com e sem crianças, sabe das inúmeras vantagens que a vida nómada tem, da constante descoberta, do impacto que os encontros com os estranhos têm, das memórias e das histórias sem fim, do que fica dentro de nós... E isto nem sempre é fácil pôr por palavras. Parece vago, fugaz, caprichoso e egoísta. Não é. É das experiências mais enriquecedoras e transformadoras que algum ser humano pode ter, se se predispuser a elas.”

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