Joe Biden e o excecionalismo americano

A ideia de uma cruzada contra os que são considerados adversários não democráticos pode ser contraproducente. Numa das partes mais perigosas da sua agenda internacional,Biden defende que é preciso “estar ao lado da sociedade civil russa”, que tem “feito frente com bravura” ao regime de Putin. Trata-se de uma intromissão nos assuntos internos russos, o que é inaceitável para Moscovo.

O excecionalismo é um dos conceitos mais presentes no vocabulário da política externa americana, acompanhando-a desde o início do seu processo de formação. Segundo Seymour Martin Lipset, ele está associado a uma ideia de singularidade, segundo a qual “a América é um caso único, diferente em aspetos cruciais da maioria dos outros países”, o que, por sua vez, conduz a um credo ideológico próprio impregnado na Constituição e no sistema político. 

O conceito nasce de uma tensão entre duas dimensões: a tradição e a contratradição. A tradição olha para o excecionalismo como uma experiência, que tem como referência as reflexões dos Pais Fundadores em torno da fragilidade da natureza humana e da história das repúblicas anteriores, o que fez com que assentassem a nova experiência constitucional americana num espírito cético, consciente do seu caráter inédito e, sobretudo, da dificuldade do seu sucesso. A contratradição nasce do triunfo da experiência americana, que contra todas as adversidades resistira às primeiras décadas, e da improbabilidade do projeto passou-se a concluir um destino providencial, que fazia dos EUA um motor da história, o seu povo o eleito por Deus, o país a nova Israel.

A abordagem a que Arthur Schlesinger Jr. chama “experiência americana” é facilmente identificável, de uma maneira geral, com a tradição realista da política externa dos EUA. Uma visão conservadora cética, senão mesmo pessimista, da natureza humana, marcada pela busca pelo poder e pela sobrevivência, em que o conflito é uma possibilidade constante. Já a contratradição corresponde à escola liberal, otimista, que acredita na missão providencial dos Estados Unidos de estender a democracia e o liberalismo, que iluminam os americanos, aos outros povos, ainda presos às contingências de uma história de conflito.

Vem tudo isto a propósito da visão de política externa de Joe Biden, que corresponde, no essencial, a um regresso à versão do excecionalismo americano como contratradição, traduzido no internacionalismo liberal que dominou a ação do país no mundo desde o fim da Guerra Fria. O argumento aqui defendido é que isso, embora tenha aspetos louváveis, já não é possível e pode mesmo acabar mal. 

No artigo que escreveu no início deste ano na Foreign Affairs, Biden afirma, sem complexos, que os Estados Unidos “têm de voltar a estar à cabeceira da mesa da liderança mundial”.

Para ele, simplesmente, “o mundo não se organiza sozinho” e precisa que a América o faça, comandando a renovação da democracia liberal dentro e fora de portas.

Tem de o fazer através de uma nova “coligação de democracias” liderada pelos Estados Unidos. Uma das suas iniciativas mais sonantes é a da organização de uma cimeira global de democracias para debater a luta contra o autoritarismo, defender os direitos humanos e combater a corrupção. O objetivo declarado é “renovar o espírito e o propósito comum das nações do mundo livre” e “juntar as democracias de todo o mundo para fortalecer as suas instituições democráticas e confrontar os Estados que estão a retroceder”.

Tem de o fazer com os aliados permanentes. Numa clara farpa ao antecessor, é dito que “as alianças transcendem dólares e cêntimos”, sendo o compromisso da América com elas “sagrado, não transacional”. A começar pela NATO, que está “no coração da segurança nacional” dos EUA e é “o bastião do ideal de democracia liberal”. Mas também com outras “democracias amigas”, aliadas ou parceiras, como a Austrália, o Japão, a Coreia do Sul, a Índia e a Indonésia.

Esta conceção tem as suas virtudes e, como já referi noutro lugar, deixa alguns dos aliados dos EUA — sobretudo a União Europeia — felizes, mas tem vários problemas. Em primeiro lugar, ela pretende recriar uma ordem internacional liberal que só foi possível durante a unipolaridade norte-americana — e mesmo aí com resultados duvidosos — e já não existe tal como a conhecíamos antes. Em segundo lugar, países como a Índia, a Indonésia, o Brasil, ou a maioria dos da Europa de Leste são profundamente soberanistas e não se reveem nesta abordagem pós-soberanista. Em terceiro lugar, ela pretende dar lições sobre a “verdadeira democracia” aos outros, como se depreende da ideia de confrontar os que que estão “a retroceder”, o que só pode ser mal recebido pelos visados.

Também a ideia de uma cruzada contra os que são considerados adversários não democráticos pode ser contraproducente. Numa das partes mais perigosas da sua agenda internacional, Joe Biden defende que é preciso “estar ao lado da sociedade civil russa”, que tem “feito frente com bravura” ao regime de Putin. Trata-se de uma intromissão nos assuntos internos russos, o que é inaceitável para Moscovo, mas também para vários dos aliados democráticos soberanistas. Quanto à China, defende-se que os Estados Unidos “têm de ser duros” com Pequim, não deixando de denunciar as violações das liberdades e dos direitos humanos no país, o que também só pode ser visto pelos chineses como uma violação do seu direito soberano de tratarem da casa como entenderem.

Os EUA têm oscilado externamente entre as duas dimensões do excecionalismo americano. A tradição levou por vezes à abdicação dos assuntos mundiais. A contratradição levou a um excessivo envolvimento e intervencionismo. A principal tarefa da Administração Joe Biden consiste em encontrar um equilíbrio entre estes dois extremos, ajudando a recriar a ordem internacional por forma que ela possa ser aceitável pelo maior número possível de Estados, a começar pelas outras grandes potências.

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