A revolução da Marionet faz-se na fronteira entre o teatro e a ciência

Companhia de Coimbra regressa à sua primeira peça ligada à ciência, A Revolução dos Corpos Celestes, para assinalar os 20 anos.

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Peça A Revolução dos Corpos Celestes Francisca Moreira/Marionet

No princípio, deus criou o Universo e colocou o planeta Terra no centro, com restantes corpos celestes a girar em seu redor. Ou talvez não tenha sido bem assim, talvez a observação do céu e os cálculos matemáticos tornem difícil de sustentar essa teoria. Hoje sabemos que não é assim, mas o desmoronamento do geocentrismo demorou séculos, num processo que ocupou vidas de matemáticos, físicos e astrónomos.

Numa hora, A Revolução dos Corpos Celestes, a peça que a companhia Marionet se estreia esta quinta-feira às 19h no Teatro da Cerca de São Bernardo, em Coimbra, revisita a história desse processo em três nomes (Ptolomeu, Copérnico e Galileu), com todas as tensões entre ciência e religião, implicações pessoais e interrogações por responder que o acompanharam.

O encenador da peça e autor do texto, Mário Montenegro, que é também o director artístico da Marionet, explica que este trabalho é sobre “o momento em que o homem deixou de estar no centro do mundo”. É também uma montra do método científico, “algo que não permite dar respostas imediatas”, refere, como este ano de 2020 tem vindo a sublinhar.

Em simultâneo, a peça que fica em palco até domingo, 22 de Novembro, é uma celebração do aniversário da companhia que nasceu em 2000. No sábado e domingo, a peça é de manhã, às 11h.

A Revolução dos Corpos Celestes foi a segunda peça encenada pela Marionet, em 2001, embora tenha sido a primeira a debruçar-se sobre temas científicos, uma linha na qual a companhia de Coimbra se especializou.

Nesta peça que chegou a ter estreia marcada para Março, mas que teve que ser adida por causa da pandemia, o diálogo entre duas personagens que vão manipulando um modelo de sistema solar, ora colocando a Terra no centro, ora colocando o Sol, estabelece um fio narrativo que acaba por se emaranhar em torno da “importância que o homem dá a si próprio, colocando-se no centro de tudo”, afirma o encenador ao PÚBLICO. Uma reflexão que pode ser transportada para a actualidade, com o grau de saturação da Terra e “com o que dela exigimos para nós”, exemplifica.

O local de estreia da peça em 2001, o extinto Museu Nacional da Ciência e da Técnica, marcou também o início de uma relação com as instituições onde se produz ciência. Um trajecto ainda mais acentuado a partir de 2010, com a aproximação ao Centro de Neurociências e Biologia Celular (CNC) da Universidade de Coimbra (UC), no âmbito do Programa Rede de Residências da Direcção-Geral das Artes (DGArtes) e da Ciência Viva – Agência Nacional para a Cultura Científica e Tecnológica. A Marionet tinha um espaço próprio no centro investigação, instalado na antiga Faculdade de Medicina da UC, e acompanhava diariamente os trabalhos de investigação. A partir daí, desenvolvia intervenções artísticas, discussões e conversas, nas quais os cientistas participavam.

Dois anos depois, estreou no CNC a peça MIM – My Inner Mind, um trabalho “sobre o lembrar e o esquecer, associado a algumas doenças relacionados com o cérebro”, refere Mário Montenegro, num espectáculo que percorria vários espaços do centro. “Desde essa altura que o centro de neurociências é um parceiro quase permanente”, diz, acrescentando também o exemplo do trabalho desenvolvido com o MARE – Centro de Ciências do Mar e do Ambiente, do qual já resultou igualmente um espectáculo. No entanto, sublinha que a perspectiva da Marionet não é pedagógica: “A nossa abordagem é artística, não é fazer comunicação de ciência. É transformá-la e devolvê-la artisticamente.” Ainda assim, ajuda a criar uma relação. “Só o facto de o público entrar nos sítios, ver onde se fazem as coisas e como é que as coisas funcionam, já há uma aproximação óbvia.”

Aniversário no limbo

Com um histórico de apoios intermitentes da DGArtes, e depois de dois anos em que recebeu o apoio bienal na linha dos cruzamentos disciplinares, a Marionet chega aos 20 anos com o futuro incerto. “Esse último apoio, de 2018 e 2019, foi muito importante para darmos um salto, a nível de capacidade de trabalho: pela primeira vez contratámos pessoas para a estrutura a tempo inteiro, tivemos uma actividade muito intensa, arrendámos um espaço. Foi com grande desânimo que nós vimos que a nossa candidatura para os próximos dois anos não tinha sido aprovada”, conta o director artístico.

Desde o início do ano, a companhia recebeu um apoio extraordinário da DGArtes e um apoio pontual da autarquia de Coimbra, mas a sustentabilidade continua comprometida. “Vai-nos permitindo ter uma base de trabalho, mas não nos dá horizontes”, diz Mário Montenegro.

No espaço que serve de sede à Marionet está o acervo de cerca de 100 volumes que dá corpo ao Centro de Documentação de Artes Performativas e Ciência, um conjunto de peças teatrais e ensaios sobre o cruzamento entre as duas áreas. A maioria está em inglês ou francês, dada a escassez de publicações do género em Portugal. A ideia, refere o director artístico, é lançar um projecto de tradução colaborativa das obras, para que atinja um público mais vasto. Entre as peças estão Arcadia, de Tom Stoppard, Copenhaga, de Michael Frayn, ou The Intelligent Design of Jenny Chow, de Rolin Jones, já traduzida e levada ao palco pela companhia em Dezembro de 2019.

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