Relatos da caixa de um mercado: chronos, aion e kairos

“Dona Ariana, peço imensa desculpa e nas futuras reservas peço que olhe com cuidado para os brócolos, mas posso garantir que nunca venderia deliberadamente a si, e a ninguém, qualquer coisa estragada.” Ela foi fazer as suas compras e hoje continua pedindo para falar com meus colegas portugueses quando liga para fazer reservas.

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Eu sempre quis começar um texto com caros leitores. Mas até então nunca tinha tido leitores, o que me impossibilitava de usar a expressão.

Caros leitores, existe em algumas passagens dos escritos de Heráclito uma interpretação sobre as diferentes palavras gregas para tempo. Chronos como o tempo do relógio, do envelhecimento, o tempo que conseguimos medir; kairos é o repentino,  o tempo da sorte, da oportunidade; aion o tempo da criança, da criação e da criatividade. As diferentes maneiras que sentimos o tempo ficam muito afloradas em lugares que não são os nossos sítios comuns. Quarenta minutos de uma série em streaming podem passar muito mais rápido do que 40 minutos de espera numa fila nas finanças, por exemplo.   

Começo o texto de hoje assim para dizer que o tempo no mercado é extremamente inconstante: quando cheio, parece fluir plenamente; quando vazio, parece lutar contra o relógio a cada segundo e o vento da loja segura os ponteiros do relógio num atrito agoniante. De repente, como num passe de magia, o telefone toca.

Do outro lado da linha estava Dona Ariana – nome meramente ilustrativo – e reconheci-a prontamente: é uma das senhoras que mais caminham por entre os corredores do mercado. Pergunto: “Em que posso ser útil, Sra. Dona Ariana?” Ela responde: “Com quem falo?” “Com Yuri, Dona Ariana.” Ela pergunta: “Yuri, suas colegas estão?”. Eu respondo que uma está no horário de almoço e a outra de folga e pergunto se ela quer fazer o pedido para mim. Ela diz que tudo bem e pede para eu separar alguns pacotes de brócolos para ela. Como de praxe, deixo anotado no sistema, retiro os brócolos e levo para a arca no stock. Alguns dias se passam e ela vai na loja. Entrego os brócolos, ela faz mais algumas compras e paga.

Dois dias depois, Dona Ariana volta a loja com uma história bem interessante em mente. Chama-me ao lado e diz que lhe vendi brócolos passados. Continuou, dizendo que com as minhas colegas isso nunca tinha acontecido. “Dona Ariana, mas eu entreguei-lhe os brócolos em mão, a senhora viu que eles saíram de cá em condições.” “Yuri, ligou-me várias vezes para vir buscá-los, isso nunca tinha acontecido. Certamente notou que estavam passados, já amarelados e quis vendê-los.” E eu pergunto: “Mas Dona Ariana, por que motivo, exactamente, é que eu faria isso?” Ela ficou um tempo sem responder e diz: “É exactamente isso que gostava de entender.” Acabo por dizer: “Dona Ariana, peço imensa desculpa e nas futuras reservas peço que olhe com cuidado para os brócolos, mas posso garantir que nunca venderia deliberadamente a si, e a ninguém, qualquer coisa estragada.” Ela foi fazer as suas compras e hoje continua pedindo para falar com meus colegas portugueses quando liga para fazer reservas.

Dona Ariana usou muito dos três tempos gregos para a elaboração de sua história. Às vezes, fico pensando no que leva alguém a expor o outro a situações de humilhação, mas nunca chego a nenhuma conclusão, além da já amplamente explorada pelas ciências humanas: as posições de poder, de imposição de classe, raça, género, sexualidade ou etnia que fundamentam as relações humanas no mundo capitalista. Dando direito inconsciente e discursivo para quem está em lugares de privilégio.

Yuri, o vendedor de brócolos podres, comercializando seu chronos por alguns dinheiros em troca do sonho de um dia voltar a viver em aion. Quem sabe, terei a sorte de esbarrar com kairos numa dessas idas e vindas e o meu tempo muda de lugar.

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