Não podemos ignorar!

Estamos a falar da negociação com um partido que se tem vindo a articular com a extrema-direita europeia.

Como escreveu Sophia de Mello Breyner Andresen, no seu poema Cantata de Paz: “[v]emos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar”. Sirvo-me desta interpelação de um dos nossos mais lúcidos espíritos, profunda e civicamente comprometido com a liberdade, para me deter num dos mais marcantes acontecimentos políticos dos últimos tempos: a disponibilidade do PPD/PSD para, a propósito da viabilização da solução política nos Açores, aceitar incluir as propostas do Chega numa futura proposta para a revisão da Constituição.

Que fique claro, uma solução política de governo com base no suporte parlamentar é constitucionalmente legítima e a anterior legislatura é a prova da sua eficácia política e democrática. Dada a fragmentação e atomização político-ideológica dos últimos vinte anos, tem vindo a ser prática num já considerável número de países europeus. Mas, neste caso, o que o PPD/PSD fez foi validar uma aliança que tem sido repudiada em diferentes países europeus por partidos que, sendo do centro-direita e da direita, rejeitam o extremismo e a xenofobia. Assim aconteceu na Espanha e na Alemanha. Dizia há dias o vice-presidente do PPD/PSD, Nuno Morais Sarmento: “Se me pergunta se o Chega tem posições xenófobas? Tem. Tem posições racistas? Tem”. A xenofobia e o racismo são as razões por que não se pode comparar a atual atitude política com o acordo feito pelo PS com os partidos que têm, até agora, dado provas de respeito pelos valores constitucionais.

Mesmo a criatividade literária de alguns, que é muita, não é suficiente para demonstrar que o acordo com o Chega é equivalente ao acordo do PS com o PCP e com o BE. É imperativo afirmar que são acordos muito distintos. Nos objetivos, no conteúdo e nos atores.

Em 2015, o PS, depois de uma discussão aberta na comissão política e no grupo parlamentar, assumiu estar disponível para negociar com o PCP e o BE no respeito pela sua identidade histórica e programática; no cumprimento das obrigações europeias e na defesa das responsabilidades transatlânticas. Os outros partidos mantiveram a sua identidade e procuraram encontrar nesse acordo com o PS um compromisso para terminar com a política de austeridade adotada pela coligação PSD/CDS. Recuperar rendimentos, repor o provimento de bens e serviços públicos essenciais. Em nenhum momento se trocou o suporte parlamentar por uma proposta de revisão constitucional.

Trata-se de uma situação muito distinta. Assistimos a uma negociação de um partido fundador da democracia portuguesa com um partido que, para viabilizar o acordo nos Açores, se propõe estabelecer como “moeda de troca”, a revisão da Constituição. E nessa revisão romper com alguns dos seus valores fundamentais. Estamos a falar da negociação com um partido que se tem vindo a articular com a extrema-direita europeia. Dizem alguns, e bem, que se não deve desvalorizar os seus cidadãos eleitores. Concordo. Todos os cidadãos merecem respeito. As más ideias o nosso combate democrático.

É, precisamente, a proposta de revisão constitucional do partido com que o PPD/PSD esteve a negociar que contempla a eliminação do artigo que trata dos limites materiais da revisão constitucional, ou seja, do artigo que, entre outros princípios, salvaguarda os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos; os direitos dos trabalhadores; a separação e a interdependência dos órgãos de soberania; a independência dos tribunais, a autonomia das autarquias locais.

Importa, ainda, lembrar que essa proposta contempla a “castração química” remetendo para lei especial a “castração físico-cirúrgica”; o trabalho compulsivo para os detidos; o fim de algumas garantias do processo criminal, como o fim da presunção da inocência; a prisão perpétua; o fim da progressividade fiscal; a privatização e o desmantelamento de serviços de saúde e de educação e a extinção de um vasto conjunto de direitos culturais e sociais.

Estas propostas políticas são de tal modo graves e contêm um significado cultural de tal maneira retrógrado que exigem dos partidos do “arco constitucional” o dever de não ignorar o que está em causa e de evitarem ser o “cavalo de tróia” de propostas que ameacem o núcleo essencial dos valores constitucionais.

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