O Natal do IVA

O cumprimento da obrigação de entrega do IVA exigível até dia 25.11.2020 criará situações disruptivas para muitos profissionais, em regime de recibos verdes, que são atentatórias da integridade do sistema fiscal, da coesão social, da dignidade humana e abrem caminho a comportamentos sociais desviantes, e a radicalização política.

É louvável o despacho do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais de 09.11.2020 visando atribuir flexibilidade ao cumprimento das obrigações fiscais, ajustando, designadamente, o calendário de entrega do IVA exigível.

Porém, ao ponderar o impacto da pandemia na vida quotidiana dos profissionais ditos “a recibos verdes” sujeitos ao regime trimestral, creio que alargar o prazo de entrega do dinheiro referente ao IVA do terceiro trimestre de 2020 por mais cinco dias (até dia 25.11.2020, em vez de até dia 20.11.2020) terá um efeito social quase nulo e, em muitos casos, até perverso, em face dos objetivos a que a medida se propõe.

Faço notar que no caso do contribuinte sujeito ao regime trimestral de IVA, trata-se de entregar até 25.11.2020 o imposto resultante dos meses de julho, agosto e setembro de 2020 (3.º trimestre) que, em muitos casos, evidenciou alguma retoma por comparação aos meses do confinamento, em especial nos setores do comércio e serviços, em particular na restauração, na hospitalidade, na cultura e nos pequenos lojistas e feirantes.

Esta entrega de imposto/IVA ocorre agora num momento em que a fonte produtora de rendimento voltou a abrandar ou até a secar devido às restrições impostas à sociabilidade, de que os milhares de profissionais dos setores da restauração, da hospitalidade, da cultura e do comércio/pequenos lojistas e feirantes sem voz ou capacidade de gerar aberturas de telejornal são um exemplo nítido.

Inegavelmente, indicadores de diversa natureza confirmam que continuamos a não estar perante o regular funcionamento da organização social da qual depende o quotidiano societal ou o do mercado, e que o apoio da UE anunciado com pompa para junho de 2020 não chegou antes da segunda vaga de covid anunciada pelos especialistas como uma certeza no outono/inverno. Um desses indicadores é que voltamos ao estado de emergência. O recolher obrigatório estendeu-se em 16.11.2020 a 77 concelhos, abrangendo agora um total de 191. Acresce que, para muitos contribuintes a recibo verde, até ao final de Novembro, haverá também que pagar a prestação do IMI.

Ou seja: para muitos profissionais dos setores que mencionei, atendendo à brutal quebra de actividade ou até à sua inexistência, entregar até dia 25.11.2020 o dinheiro do IVA significa entregar ao Estado uma quantia que lhes permite sobreviver por mais algum tempo. Pergunto, o que é que é melhor:  

  1. entregar o IVA ao Estado até dia 25.11.2020 e, através do cumprimento desta obrigação fiscal, originar uma rutura na capacidade do contribuinte financiar a estrutura da qual depende o seu quotidiano (renda de casa, supermercado, farmácia, água, luz, telecomunicações, etc.), e, no limite, encaminhá-lo para a economia paralela ou para o subsídio de desemprego, ou
  2. conferir ao contribuinte uma folga maior de calendário para entregar o IVA, permitindo que esse dinheiro o financie mais 60 dias de existência, até porque, com o Natal, poderá haver um aumento de procura/rendimento também devido ao efeito dos novos apoios dados à economia, bem como às melhorias no controlo do pico da pandemia.

Faço também notar que, em muitos casos, a situação que mencionei força os contribuintes a recorrer ao financiamento bancário para financiar a pressão de tesouraria que, além de caro, será restrito àqueles que o possam lograr, o que não será a maioria dos profissionais.

Inegalvelmente estamos perante uma falha de mercado, em particular nos setores do comércio e serviços, em especial na restauração, na hospitalidade, na cultura e nos pequenos lojistas e feirantes. Falha de mercado que, como venho advogando, não é tão temporária como alguns afirmam ser. Exige-se sentido de justiça e de bom senso, desde logo respeitando a natureza do imposto como instrumento histórico-político ao serviço da liberdade, da propriedade e da solidariedade, em especial no orientar os cidadãos no caminho do bem.

O cumprimento da obrigação de entrega do IVA exigível até dia 25.11.2020 criará situações disruptivas para muitos profissionais, em regime de recibos verdes, que devido às razões que especifiquei são atentatórias da integridade do sistema fiscal, da coesão social, da dignidade humana e abrem caminho a comportamentos sociais desviantes, e a radicalização política.

Acresce que retira liquidez e procura/consumo à economia, e cria uma dinâmica que favorece a aceitação social da fraude e da evasão fiscal, em especial perante a massiva utilização dos impostos do trabalho e das empresas para financiar os problemas criados no sistema financeiro por má gestão e fraudes.

Apelo ao Governo para que repense este calendário e que aperfeiçoe a meritória medida que adoptou, assegurando-lhe condições de eficácia real. Neste sentido, deverá alargar a entrega do imposto exigível em resultado da declaração referente ao terceiro trimestre (IVA), até 20 de janeiro 2021.

Deverá também introduzir a possibilidade de pagamento em prestações como fez na oportunidade da primeira vaga, especialmente agora que os agentes económicos sofrem a ação conjugada das duas vagas, e já não dispõem na maioria dos cados da almofada que existiu na primeira vaga. Permitirá assim um balão de oxigénio aos contribuintes que, além de justo, promove a harmonia social, em especial na quadra Natalícia. 

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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