Um sistema eleitoral, um país em crise

Está aí uma evidente e profunda crise da democracia e uma crise do próprio sistema constitucional dos Estados Unidos e da própria comunidade politica. Esperemos que o sentimento profundo dos cidadãos e o bom senso acabem por ser mais fortes do que qualquer nacional-populismo.

1. Há dois sistemas eleitorais básicos: o sistema de representação maioritária, em que é eleito quem consegue a maioria dos votos, e a representação proporcional, em que se distribuem os mandatos de acordo com a proporção de votos obtidos por cada candidatura. E há depois vários sistemas mistos.

A representação maioritária impõe-se na eleição direta do Presidente da República, como sucede em Portugal, à luz da Constituição de 1976 (na qual, como se sabe, se exige maioria absoluta, na primeira votação). Também é adotada em países em que, na eleição parlamentar, cada círculo eleitoral designa um seu representante (como é, classicamente, o caso da Grã-Bretanha).

A representação proporcional, com mais ou menos variações (assim é na Alemanha, com a chamada representação proporcional personalizada), está prevista nas eleições parlamentares na generalidade dos regimes democráticos.

2. Nos Estados Unidos, porém, a eleição do Presidente faz-se por um colégio de eleitores, em função da população de cada Estado e, em cada Estado, a totalidade dos eleitores é atribuída ao candidato que tenha ficado em primeiro lugar. Por exemplo: num Estado a que caibam 40 eleitores, todos eles são consignados a quem tenha obtido maior número de votos, mesmo que a diferença em relação ao segundo seja mínima.

É um sistema que remonta à Constituição de 1787, com poucas alterações. Vale a pena transcrever o essencial do seu art. 2.º:

Cada Estado designará, pelo modo a fixar pela sua Assembleia legislativa, um número de eleitores igual ao número total de Senadores e Representantes, a que o Estado tiver direito no Congresso.

Os eleitores reunir-se-ão em cada Estado e votarão por escrutínio secreto em duas pessoas, uma das quais pelo menos não terá residência nesse Estado.

(…)

Na eleição do Presidente, os votos serão contados por Estados, entendendo-se que à representação de cada Estado cabe um voto global; para este efeito, o quorum exigido compreenderá um ou vários Representantes de dois terços dos Estados e para a eleição será necessária a maioria de todos os Estados.

(…)

Será proclamada eleita Presidente a pessoa que obtiver a maioria absoluta dos votos dos eleitores designados e, se ninguém obtiver maioria absoluta, a Câmara dos Representantes imediatamente escolherá, por escrutínio secreto, o Presidente entre as três pessoas mais votadas. Na eleição do Presidente, os votos serão contados por Estados, entendendo‑se que à representação de cada Estado cabe um voto; para este efeito, o quorum exigido compreenderá um ou vários Representantes de dois terços dos Estados e para a eleição será necessária a maioria de todos os Estados.

3. Sendo indireta a eleição, compreende‑se bem a consideração Estado a Estado, por se estar numa federação (embora haja muita diferença entre os 13 Estados de 1787 e os 50 de agora).

O que não se compreende vem a ser a representação maioritária por Estados, que levou a que Hillary Clinton tivesse tido mais três milhões de votos que Donald Trump e não tivesse sido eleita. E que leva, nestes dias, a que Joe Biden, com mais de cinco milhões de votos, ainda pareça estar dependente de uma recontagem de votos em alguns Estados.

Está aí uma evidente e profunda crise da democracia e uma crise do próprio sistema constitucional dos Estados Unidos e da própria comunidade politica. Esperemos que o sentimento profundo dos cidadãos e o bom senso acabem por ser mais fortes do que qualquer nacional‑populismo.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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