O elefante no meio da sala

Fazer um acordo com quem exclui a decência entre os homens do seu discurso é perigoso e, em si mesmo, indecente.

Já passaram mais de sete anos, mas ainda me lembro bem das pedras rachadas, das ervas a espreitar entre o cinzento sujo da escadaria onde algumas pessoas descansavam ao sol, da estranheza de ver as marcas de um circuito automóvel no local para sempre marcado pelas imagens das grandes paradas nazis captadas por Leni Riefenstahl no seu filme O Triunfo da Vontade. Em meados do século passado, Nuremberga trocou a sua identidade de bonita cidade medieval alemã pelo da cidade-talismã de Adolf Hitler, o local escolhido por ele para realizar os congressos do seu partido e onde, em 1935, foram promulgadas as leis contra os judeus, a da Cidadania do Reich e a de Protecção do Sangue e da Honra Alemã. E Nuremberga paga esse preço até hoje. Tal como toda a Alemanha.

Para alguém que chega de fora, é estranha e desconfortável a relação que o país mantém com a Segunda Guerra Mundial. Por um lado, transformou os campos de concentração do regime nazi em extraordinários centros de memória e documentação, que os jovens visitam obrigatoriamente com as suas escolas, para que ninguém possa dizer que não sabe o que ali aconteceu. Por outro, também acontece estarmos na pequena localidade de Belsen e pedirmos indicações para o antigo campo de concentração de Bergen-Belsen e olharem para nós como se não fizessem ideia sobre o que estamos a falar.

Este desconforto torna-se particularmente visível nas pedras de Nuremberga, nos locais semiconstruídos e semidestruídos que Adolf Hitler quis erguer na cidade, e que, no pós-guerra, se tornaram uma memória demasiado pesada para gerir. Sobretudo o Parque Zepellin, o tal das concentrações à luz de tochas incendiárias, que ficou num limbo, demasiado grande para ser esquecido e ignorado, demasiado vergonhoso e perigoso para ser restaurado.

Foto
Cena do filme O Triunfo da Vontade (1935)

Em 2013, uma guia turística explicava — perante os avisos de que quem usasse os degraus voltados para o que sobra da antiga tribuna, o fazia por sua própria conta e risco, já que a segurança não era garantida — o dilema com que Nuremberga se confrontava: “A cidade não sabe muito bem o que fazer com aquilo. Vai pondo uns remendos, um bocado de cimento de vez em quando, mas mais nada.”

Agora, chegam notícias de que, finalmente, Nuremberga decidiu o que fazer com aquilo, com o seu grande elefante no meio da sala. Vai restaurá-lo, para que se junte a todos os outros locais que contam o horror nazi, na esperança de que o conhecimento trazido por estes espaços seja suficiente para que ninguém queira ver repetido o que ali se passou.

É arriscado, claro que é. É sobretudo arriscado nestes tempos em que populistas e neonazis se alimentam do medo do outro para propagarem discursos mesquinhos, que instigam ao ódio e à violência, em vez de procurarem pontes de entendimento, que é o que os homens decentes procuram sempre fazer.

E não, não vou confundir pequenos oportunistas, que sabem tocar nas teclas certas de quem tem medo ou foi alvo de demasiadas rasteiras da vida, com Adolf Hitler. Mas também não vou fingir que eles não existem, esses pequenos oportunistas, que hoje conseguem o seu momento no centro do palco. Nem varrê-los para debaixo do tapete, dizendo que dar-lhe uma pequena mão, hoje, não faz mal, porque haverá sempre forma de os controlar.

Não há, às vezes não há. E dar-lhes uma mão hoje pode ser tudo o que eles precisam para crescerem um pouco mais amanhã. Para que, sem sabermos muito bem como, nos tornemos reféns das suas verdades inquinadas e das suas propostas indecentes.

É por isso que fazer um acordo com quem exclui a decência entre os homens do seu discurso é perigoso e, em si mesmo, indecente. E não importa os termos do acordo. Não importa se o acordo for um entendimento para que, daqui para a frente, todos passemos a ter um arco-íris sobre as nossas cabeças, só para andarmos mais felizes. Isso não importa nada. E as pedras de Nuremberga podem explicá-lo melhor do que ninguém.

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