Ver um concerto do sofá: será que o futuro da música ao vivo passa pelo streaming?

A transmissão de concertos em directo tornou-se uma realidade durante a pandemia e pode estar aqui para ficar. Desde a programação cultural em directo da startup Oda à experiência personalizada da veterena StageIt ou ao ciclo de concertos da portuguesa PlayItSafe, o futuro dos espectáculos ao vivo pode passar, em parte, pelo digital.

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Paulo Pimenta

O confinamento repentino em Março levou ao cancelamento de inúmeros espectáculos na área da cultura e o sector da música foi particularmente afectado, pondo em causa o rendimento de inúmeros artistas, bem como de todos os técnicos envolvidos na produção de espectáculos. As novas tecnologias, em particular as redes sociais, permitiram, numa fase inicial, que os músicos pudessem continuar a partilhar o seu trabalho com milhares de pessoas via live streaming: em Portugal, por exemplo, realizou-se o festival Eu Fico Em Casa que entre 17 e 22 de Março juntou perto de 100 artistas que apresentaram actuações de meia hora nas suas contas de Instagram.

Entretanto, têm surgido outras alternativas às redes sociais que permitem aos artistas transmitir os seus concertos ao vivo de forma economicamente sustentável. Esta adaptação pode vir a ter consequências na forma como a música é experienciada, distribuída e apresentada. Basta pensar no caso da cantautora britânica Laura Marling, que conseguiu vender 4500 bilhetes para um concerto online em Junho, na Union Chapel, em Londres: a sala estava vazia e a artista actuou sozinha num espaço que fisicamente apenas conseguiria acomodar 900 pessoas.

O concerto foi transmitido pela Dice, uma bilheteira online que durante a pandemia alterou o seu modelo de negócio para facilitar a transmissão de espectáculos em casa, através da Dice TV. Esta nova plataforma alberga não só actuações ao vivo por todo o mundo – já foram transmitidos concertos de Nick Cave e Björk – mas também espectáculos de comédia, workshops de meditação e aulas de desenho, segundo o mote “se pode ser transmitido ao vivo, provavelmente está na Dice TV”.

“A pandemia atingiu a música ao vivo e as artes de forma mais agressiva que maior parte das outras indústrias. A Dice adaptou-se rapidamente e melhorou a plataforma de forma a transmitir espectáculos directamente para a casa dos fãs”, explica ao P3 Olivier Geynet, director de música para o mercado espanhol da empresa inglesa. “A transmissão em tempo real não é um substituto para os eventos ao vivo, mas está a providenciar uma abertura criativa fantástica para os artistas – e ainda só começámos a arranhar a superfície do que o meio tem para oferecer aos fãs.”

Olivier acredita que o futuro dos espectáculos ao vivo passa mesmo pela combinação com a transmissão directa. “Acho que vamos ver um maior número de eventos híbridos, onde os fãs terão a opção de estar no concerto fisicamente ou vê-lo a partir de casa”, considera. No seu entender, está a construir-se “uma indústria mais sustentável”, comenta, apontando também para uma mudança no comportamento dos fãs. “Achamos que este período vai trazer uma mudança nos comportamentos dos fãs a longo prazo. Se os fãs pagam para ver eventos desportivos em directo, porque não haveriam de pagar para ver música ao vivo?”

O director de música indica que o futuro da transmissão de espectáculos ao vivo pode passar por um paradigma já existente: “Da mesma forma que os serviços de streaming de música deram aos fãs recomendações personalizadas sobre os seus artistas favoritos por todo o mundo, a Dice quer fazer a mesma coisa, tanto para eventos físicos, como digitais.”

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Dice

A Dice TV transmite concertos organizados e planeados maioritariamente em salas de espectáculo, o que a distancia das transmissões caseiras organizadas no Instagram e no Facebook. Já a plataforma StageIt procura destacar-se ao oferecer ao público “um lugar na primeira fila para uma experiência de bastidores”, permitindo aos artistas transmitir um concerto em casa, nos camarins ou em estúdio através do computador.

Lançada em 2009, a StageIt viu o seu modelo de negócio ser vindicado com o confinamento obrigatório, e destacou-se desde logo como uma das principais alternativas aos eventos presenciais pela forma como protege e ajuda os artistas. “Ao longo da pandemia, a transmissão de espectáculos ao vivo tornou-se crucial para fãs que procuram entretenimento e conexão e para artistas como forma de sustentabilidade”, diz Stephen White, CEO da StageIt. “Nós providenciamos uma plataforma onde os artistas podem ser pagos pelos seus espectáculos e ainda cobrimos os custos dos direitos de autor, da transmissão, do processamento de cartões de crédito e mais, para que possam receber 80% de todo o lucro dos seus espectáculos.”

Os membros do público têm, através da StageIt, a possibilidade de doar dinheiro em tempo real, comprar bilhetes para outros utilizadores e também interagir com os artistas, podendo mesmo pedir músicas ou fazer perguntas pessoais. Os concertos não são gravados nem mantidos na plataforma, de forma a manter um sentido de exclusividade e criar maior intimidade entre o artista e audiência. “Também criámos um sistema de gorjetas, de recompensas e de lojas de merchandising para ajudar os artistas a aumentar o lucro, o que contribuiu para os mais de seis milhões de dólares que pagámos aos artistas desde Março”, explica Stephen.

A plataforma já acolheu concertos de nomes como Jon Bon Jovi, Jimmy Buffett ou Jazon Mraz, antes da covid-19. Durante a pandemia, os concertos de artistas como Big Freedia e Rhett Miller conseguiram mais de 700 mil visualizações únicas. “A StageIt está a dar esperança aos artistas enquanto eles não têm possibilidades de dar espectáculos ao vivo e precisam de se sustentar”, afirma White. “Os impactos da covid-19 na indústria musical não vão desaparecer tão cedo e a transmissão de espectáculos ao vivo está aqui para ficar como complemento aos espectáculos em si num mundo pós-pandemia.”

Outro exemplo de adaptação à nova realidade social é o da Oda, uma empresa de altifalantes que está a tentar alterar a forma como as pessoas experienciam música ao vivo à distância. Com base num sistema de subscrição, disponibiliza uma programação cultural em directo através das suas colunas. “O futuro da transmissão de espectáculos ao vivo depende da oferta de um sortido valioso de opções para os artistas e a audiência”, diz Nick Dangerfield, fundador da Oda. “Da mesma forma que temos diferentes opções para o espaço físico da música ao vivo – temos estádios e temos clubes pequenos e escuros.”

Assim, durante a semana, podem escutar-se leituras e sessões de música ao vivo para acompanhar o pôr do Sol; ao fim-de-semana, concertos e debates. A diversidade é o lema. “A ideia de uma abordagem única é absurda”, explica Nick. “Rejeito fortemente um futuro digital que consiste num número de ofertas banais por parte das companhias tecnológicas dominantes. As comunidades musicais precisam de criar o seu próprio espaço digital.”

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Coluna da Oda, com programação própria via transmissão directa Oda

Nick acredita que a transmissão em directo de espectáculos ao vivo deve ser o mais variada possível e que cabe à Oda diversificar o tecido da indústria. “[Em cinco anos,] a Oda terá estabelecido que a música ao vivo consegue coexistir nos nossos lares com a música gravada.” De momento, o modelo de streaming da Oda funciona apenas nos Estados Unidos, mas a empresa planeia expandir-se para o Reino Unido no Verão de 2021, seguindo-se alguns países europeus “pouco depois”.

Em Portugal, foi, por exemplo, lançada a plataforma Culture Live Online para ajudar os artistas portugueses durante a pandemia. Fundada no fim de Maio, a plataforma de transmissão tem concertos e sessões de leitura já programados até Fevereiro de 2021.

A PlayIt Safe, criada pelo Gig Club, iniciou também um ciclo de transmissões de concertos ao vivo durante a primeira vaga da pandemia, que estão ainda disponíveis para ver on demand no site da plataforma. “Estamos a pensar voltar a fazer alguns concertos até por causa desta nova vaga”, diz João Afonso, fundador do Gig Club, para quem se pode estar a assistir a uma pequena revolução. “Depois da pandemia faz sentido um modelo híbrido”, confirma. “Um modelo com plataforma de streaming para quem não pôde deslocar-se ao concerto, com um bilhete ligeiramente mais barato, ou para quem foi ao evento e queira rever o concerto nos dias seguintes de forma digital.”

João não acredita que o caminho a seguir seja apenas baseado na transmissão em directo, mas acha que “devia haver uma uma integração que faça sentido e que não desvie da experiência ao vivo”. “Quando estivermos num período normal podemos ter esse equilíbrio, que pode ajudar os artistas a fazer um pouco mais de dinheiro.”

Texto editado por Amanda Ribeiro

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