A ilusão democrática

A democracia repousa sobre um arranjo representativo artificial que induz em erro grande parte do eleitorado. Esta é uma das suas mais flagrantes fragilidades.

Segundo as sondagens, o Governo e o Presidente da República estão em queda na opinião dos portugueses. Pessoalmente, não sendo especialmente afeiçoada nem a um nem a outro, o caso não me preocupa. Mas é preocupante de um ponto de vista político-social: mal se somem as vacas gordas e, em vez de facilidades, sobram as dificuldades, parte do eleitorado deserta. E, realmente, desde o princípio deste ano que as vacas deixaram de voar em Portugal. Em consequência, tem-se vindo a formar um cortejo cada vez mais longo de descontentes e desertores. Não têm, na sua esmagadora maioria, nem uma vaguíssima ideia do que se poderia fazer ou ter feito em alternativa às mais recentes medidas do Governo para combater a covid nas frentes sanitária e económica. Mas sentem-se traídos. Porquê? Porque vêem a sua modesta zona de conforto ameaçada, e responsabilizam o Governo (e o Parlamento) pela sua desdita. Cumpre perguntar: com que legitimidade fustigam o executivo saído das eleições de há um ano? Com a legitimidade de quem não percebe que a “representação descritiva” (Hanna Pitkin) é apenas uma ficção para legitimar o Poder. Sim: a democracia repousa sobre um arranjo representativo artificial que induz em erro grande parte do eleitorado. Esta é uma das suas mais flagrantes fragilidades. E constitui a origem da flutuação da opinião pública no que toca à apreciação da performance governativa.

Há muitas formas de encarar o acto de votar. Por exemplo, votar para conferir autoridade e liberdade de acção a um corpo legislativo que decide a nossa vida colectiva e particular. Neste caso, o Parlamento é então visto como um órgão autorizado pelos eleitores a legislar como melhor lhe aprouver, sem prévio comprometimento com esta ou aquela política. Porém, este é um entendimento minoritário do conceito de “representação”. A maioria dos eleitores vota com a vaga convicção de que os deputados eleitos são seus substitutos pessoais; que estão no Parlamento para fazer ou decidir o que eles fariam e decidiriam se lá estivessem sentados. Este é o entendimento mais popular e difundido do conceito de “representação”; é também o mais erróneo. Na realidade, nós não elegemos os nossos putativos substitutos, conferimos incondicionalmente autoridade ao Poder. Uma autoridade legítima que provém da eleição, que não passa de uma forma ou meio de delegação: um tiro no escuro. Nada disto impede ou deslegitima a crítica da Autoridade assim constituída, mas não autoriza queixumes inteiramente previsíveis aquando do acto de votar.

Uma das consequências mais nefastas do predomínio da “representação descritiva” é, sem dúvida, a necessidade que ela impõe de agradar para governar: o Governo, mesmo em tempos de vacas magras, tem obrigatoriamente de ser popular. E para ser popular – como acabámos de ver com a negociação do Orçamento do Estado – tem de se expor à chantagem da extrema-esquerda (BE). Para gáudio de muita gente, ao BE o tiro saiu pela culatra, mas veremos o que o PCP vai exigir durante a discussão na especialidade. O Governo, quer queira quer não queira, vai ter de oferecer alguma coisa a determinados grupos sociais ou corporações profissionais; o Governo precisa não apenas do voto dos comunistas – a ligação com o PAN garantiria a aprovação final do OE – mas também, ou sobretudo, precisa de ser popular, um aspecto em que a camaradagem com o PCP talvez lhe valha um mínimo de paz sindical.

O problema é tão velho quanto a própria “democracia representativa”. François Guizot, pai do “doutrinarismo” liberal oitocentista e ministro de Luis Filipe d’Orleães (1830-1848), fartou-se de escrever (e falar) sobre o “governo representativo”. O que segundo ele definia o “governo representativo” não era a representação, mas sim a “publicidade”, quer dizer, a pública discussão parlamentar complementada por uma imprensa livre. Entre nós, no séc. XIX, a falta de representatividade dos deputados motivou muitas imprecações e generalizados suspiros desanimados, até que D. Pedro V (1853-1861) convenceu Rodrigo da Fonseca e Fontes Pereira de Melo a introduzir a eleição por círculos uninominais. Mas esta medida nada resolveu, porque o caciquismo do governo – o maior patrono de Portugal – continuou a exercer-se desbragadamente. Por causa desta falha de verdade eleitoral, até 1851, quando se inaugura a “Regeneração”, nenhum governo foi reconhecido pelas oposições como legítimo; nenhum tinha o direito de governar. Depois de 1851, e beneficiando do espírito conciliatório propiciado pelo consensualismo regenerador, os partidos combinaram que os resultados eleitorais, fossem quais fossem, seriam respeitados. Porém, esta transacção ocorreu na cúpula, enquanto a generalidade da “parte pensante da nação” (A. Garrett) manteve sempre o mesmo cepticismo a respeito da genuinidade das eleições, que acusavam, e com razão, de serem fraudulentas.

Desde o 25 de Abril para cá, as eleições são livres e isentas. Porém, muitos e muitos votantes sentem-se defraudados pois acreditaram, ingenuamente, que estavam a eleger deputados que tudo decidiriam como eles, se estivessem no Parlamento. Nos últimos anos, a amostra mais aparatosa deste desajustamento entre as expectativas dos eleitores e a actuação dos eleitos aconteceu nas eleições de 2015. Afinal, quem votou na “geringonça”? Os eleitores foram avisados de que essa seria uma hipótese de formação de um governo socialista? Não, não foram, e o caso surpreendeu muita ou quase toda a gente. Ninguém votou sabendo que do seu voto poderia sair, como saiu, uma aliança entre o PS e os partidos radicais à sua esquerda – o que configurou uma revolução dentro do regime. Desde então, votamos às escuras: ninguém sabe para o que pode servir o seu voto. A “representação descritiva” é a pior das representações possíveis. É simplesmente uma infantilidade.

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