Conselho da Europa diz que violência policial é frequente em Portugal e pede “medidas urgentes”

Comité Antitortura do Conselho da Europa fez a 11.ª visita a Portugal e concluiu que afrodescendentes e imigrantes são dos que mais sofrem às mãos da polícia. Chefe de delegação diz ao PÚBLICO que já não acredita na Inspecção-Geral da Administração Interna.

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O caso dos oito PSP da Esquadra de Alfragide, condenados por agressões e sequestro em Maio de 2019 Rui Gaudencio

A violência policial contra cidadãos detidos, sobretudo afrodescendentes e imigrantes, é algo que acontece frequentemente em Portugal. Mas as autoridades governamentais não reconhecem o problema, adoptando uma postura de negação. As conclusões são do Comité Anti-Tortura do Conselho da Europa (CPT na sigla inglesa), que visitou pela 11.ª vez Portugal em Dezembro de 2019 e que, mais uma vez, colocou a ênfase na questão dos maus tratos infligidos pelas forças de segurança. 

Num relatório que foi publicado esta sexta-feira, escreve: “O CPT considera que não foi feito o suficiente para reconhecer e atacar o real e persistente problema dos maus tratos pelas forças de segurança que existe em Portugal.” Esta é, aliás, uma preocupação recorrente que vem sido referida nos relatórios anteriores. Mais: a “seriedade da informação recolhida na visita de 2019” leva o CPT a pedir a tomada de “medidas imediatas e firmes” pelas autoridades portuguesas, que devem reconhecer que os maus tratos são “um facto, e não o resultado de haver alguns polícias desonestos”. “A cultura policial deve ser robusta o suficiente para rejeitar veementemente a prática de maus tratos entre a sua hierarquia”, afirma-se no relatório.

A maior parte das pessoas com quem falaram diz ter sido bem tratada pela polícia, a prática não é generalizada, só que acontece mais frequentemente do que deveria e de forma sistemática, diz a chefe da delegação, Julia Kozma, em entrevista ao PÚBLICO. A resposta comum das autoridades, diz, “é que existe tolerância zero em relação a estas práticas, mas depois parece haver uma negação de que estes casos acontecem frequentemente”. E sublinha: “Não se trata de um policial que, num ano, infringe a lei. Todos os anos que vimos a Portugal há alegações de mais casos, e provas, e não há suficientemente consciência de que isto está no sistema e é preciso ser atacado. Há relutância em levar alguém a ser punido.”
Agressão de suspeitos para confessarem o crime ou para os punir; estaladas, murros e pontapés ou bastonadas; insultos verbais sobre a cor da pele, algemagem durante horas seguidas durante a detenção ou enquanto os cidadãos estavam detidos foram algumas das queixas mais frequentes e “credíveis” que mereceram a atenção do CPT.
A também advogada diz que “já não acredita” na Inspecção-Geral da Administração Interna (IGAI). “A resposta que tivemos aos nossos casos foi uma desilusão. Parecem ter-se baseado completamente nos relatórios da polícia, não há indicação de que houve algum tipo de investigação. Em todos os casos que referimos dizem ter olhado para os relatórios da polícia, e que foi usada a força de forma proporcional e, portanto, o caso foi encerrado.”

Em geral a resposta das autoridades portuguesas foi insatisfatória, critica. “Fizemos uma série de recomendações que não foram aceites de todo. Por exemplo, que os polícias que estão em operações especiais devem ter identificação” — isto a propósito do caso de um adepto do Boavista que ficou cego depois de uma agressão por polícias, mas em que o tribunal não conseguiu que alguém fosse condenado por ninguém ter sido identificado. Noutras tiveram como resposta “que era a lei”: “A responsabilidade [das autoridades] é aplicar a lei segundo parâmetros de direitos humanos, não chega citar a lei.”
Colegas devem denunciar.

Entre as várias medidas que o CPT elenca está a responsabilização dos oficiais superiores pela sua equipa ou a aplicação de sanções apropriadas, tanto criminais como disciplinares, aos agressores e a quem não previne nem reporta os maus tratos. Sugere ainda que se responsabilize quem sabe, ou deveria saber, que os actos foram praticados, mas não os preveniu ou reportou. Encoraja os agentes a denunciar qualquer situação de violência exercida pelos colegas.

Lê-se ainda que “o CPT recomenda que o ministro da Administração Interna e as direcções da GNR, PSP e SEF passem uma mensagem forte de que os maus tratos a pessoas detidas é ilegal, não-profissional e será sujeito a sanções apropriadas”. A mensagem deve ser igualmente transmitida pela ministra da Justiça e pelo director nacional da Polícia Judiciária, acrescenta. 
Entre várias recomendações estão ainda a de a GNR e PSP desenvolverem programas para reforçar os laços comunitários, nomeadamente em áreas com uma elevada proporção de imigrantes e afrodescendentes.

O baixo número de condenações levam o CPT a sugerir também melhoria na rapidez da investigação das queixas pelo Ministério Público, o que requer mais meios humanos. Num dos vários exemplos, o CPT lembra o do major Carlos Botas, da GNR, acusado de torturar quatro cidadãos — foi um caso para o qual o CPT chamou a atenção em 2012, 2013 e 2016, acusando as autoridades de não fazerem investigação. O caso foi reaberto por causa dos avisos do CPT, o oficial foi condenado, mas, em 2019, o Tribunal da Relação anulou a decisão por causa de uma formalidade. 

O documento de quase 60 páginas foi transmitido em Julho às autoridades portuguesas. Houve encontros com vários representantes dos ministérios da Justiça e da Administração Interna e da IGAI. Entre os vários pontos das respostas dadas, Portugal afirmou que a IGAI tem o Plano de Prevenção de Práticas Discriminatórias, que os directores das respectivas polícias transmitem a mensagem aos agentes de que os maus tratos “colidem” com a missão e dever profissional e que todas as queixas são investigadas.

Prisões repletas

O CPT também é bastante crítico em relação às prisões, nomeadamente ao número de presos e sobrelotação dos estabelecimentos prisionais, apontando o dedo a Caxias, Porto e Setúbal, que continuam a ter graves problemas: “Pessoas vulneráveis foram detidas nestas três prisões em muito más condições, em espaços com menos de 3 m2 e confinados às celas mais de 23h por dia.”
A recomendação de fecharem o Hospital-Prisão de Santa Cruz do Bispo mantém-se, como em relatórios anteriores: “Os pacientes estavam em condições ultrajantes”, sublinham. O Governo respondeu que os ministérios da Justiça e da Saúde designaram um grupo de trabalho para fazer alterações à Lei de Saúde Mental.

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