O preço da traição

Rui Rio caiu na mesma asneira que outros políticos de direita pelo mundo fora. Pagará caro por isso.

Pode alguém ser quem não é? Sérgio Godinho deixou-nos esta pergunta ainda Portugal estava mergulhado na longa noite. Eram tempos em que a morte saia à rua para reprimir a liberdade, a PIDE torturava e prendia impondo as suas regras e leis, o lápis azul na mão do censor ditava a verdade que o regime aceitava.

Milhares de homens e mulheres resistiram durante esse longo inverno, entregaram a vida à luta pela liberdade enquanto sonhavam com a democracia, e os capitães de abril fizeram raiar o sol desse dia inteiro e limpo. Merecem-nos respeito e gratidão e não os insultos a que temos assistido em jeito de graçola infantilizada em rede social.

Tudo começou com normalidade democrática: PSD, CDS e PPM oficializaram uma coligação para a governação da Região Autónoma dos Açores. Em busca de referências históricas que pudessem dar solidez à aliança, foi rapidamente batizada como a “AD dos Açores” - paralelismo com a Aliança Democrática que em 1979 juntou esses mesmos partidos à escala nacional. No entanto, não demorou muito a descambar: o que mudou tudo na política portuguesa foi o anúncio que se seguiu - PSD firmou um acordo com o Chega para garantir o poder regional.

Rui Rio não percebe, ou finge não perceber, que destruiu um consenso de décadas, forjado com a revolução de abril de 1974. O regime democrático constitucional foi confrontado desde cedo pelos saudosistas de Salazar, eles andavam por aí e até formaram partidos na segunda metade da década de 1970. Os partidos democráticos, da esquerda à direita, é que nunca abriram as portas aos inimigos da democracia. Por grandes que fossem as diferenças entre os partidos democráticos - e elas eram bem visíveis - o cordão sanitário instaurado defendia a Constituição e a Democracia e era mais importante do que as comezinhas lutas pelo poder.

A direita, com as lideranças históricas de Francisco Sá Carneiro, Diogo Freitas do Amaral e Gonçalo Ribeiro Telles (falecido no início da semana foi também destacado militante pela ecologia e cidadania política), rejeitaram sempre reconhecer a legitimidade democrática dos partidos, movimentos ou personalidades da extrema-direita. Veja-se que a discussão não era sobre a legalidade destes partidos, se tinham ou não chancela do Tribunal Constitucional: era uma posição política forte de quem sabe que a normalização de um partido é um ato político, não é uma decisão administrativa.

Por isso mesmo, quando foi criada a AD, em 1979, recusaram a adesão de partidos como o MIRN, o PDC ou a FN. Rui Rio pode citar Sá Carneiro o dia todo, mas colocou na gaveta um dos pilares fundamentais da sua doutrina - a direita constitucional rejeitava o legado salazarista, Rio estendeu-lhe o tapete para a normalização.

A decisão do PSD abriu um debate que tem roçado o absurdo, baseando-se na revisão histórica para impor opiniões maniqueístas, o campeonato do relativismo e a discussão dos males menores. Se não fosse trágico, seria ridículo.

Li um comentador afirmar que os “muros” foram derrubados em 2015, culpando António Costa pela escolha de Rui Rio. Socorro-me de Sá Carneiro: acusava Mário Soares de pactuar com os partidos à sua esquerda (pelos vistos o pecado do PS já é antigo) e, mesmo assim, nunca rompeu o consenso constitucional - há barreiras que não se cruzam. Mas, como o disparate é livre, para justificar o injustificável tenta, no mesmo artigo, equivaler as propostas de castração química de pedófilos com as 35 horas de trabalho na função pública. Quer tornar iguais os defensores e os inimigos do regime constitucional.

Nuno Morais Sarmento, vice-presidente do PSD e ignorante sobre o programa do BE, disse não ter dúvidas de que o Chega tem “posições xenófobas e racistas”. Mas logo começou a relativização: para ele, qualquer ameaça à propriedade privada não é menos grave do que a xenofobia ou o racismo. Que se lixe a Constituição. Compara propostas de ódio racial à defesa de serviços públicos, a estigmatização de minorias com alterações ao código laboral - é uma retórica abjeta. O oportunismo tenta esconder a rutura com o respeito pelos direitos humanos fundamentais.

Rui Rio caiu na mesma asneira que outros políticos de direita pelo mundo fora. Pagará caro por isso. Cabe aos democratas garantir que o país não tenha de lidar com essa fatura.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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