Dona Odete “guarda as últimas palavras da língua kuruaya”, agora eternizadas por Miguel em vídeo

“No mundo, parece que o número de idiomas diminui porque já não há espaço para se viver de forma diferente”, começa por dizer Miguel Pinheiro, fotógrafo e autor da série documental Terra Preta?. Partindo desta premissa, o realizador português decidiu conversar e produzir um vídeo sobre Iawa, uma indígena brasileira conhecida também por Dona Odete Kuruaya. De idade desconhecida, que pode rondar entre os 80 e os 90 anos, esta é a última falante de kuruaya residente em Xingu, no Brasil, eternizada pela narrativa visual de Miguel Pinheiro. Este episódio documental está agora nomeado para o prémio internacional da Global Landscapes Forum

Iawa é filha de pai xipaya e mãe kuruaya e, com o passar do tempo, foi transmitindo às gerações mais jovens todo o conhecimento empírico que adquiriu. Nas palavras de Miguel Pinheiro, trata-se de uma mulher "com uma lucidez desarmante e reconhecidamente a mais sábia da família". Dona Odete Kuruaya sabe quais as ervas e plantas mais adequadas para cada situação, sabe quando deitar a semente na terra, "conhece a história do lugar como poucos e guarda as últimas palavras da língua", conta o fotógrafo, por email, ao P3. 

Em horas de conversa sobre o passado, as lendas e os heróis kuruaya, Miguel Pinheiro ficou a saber o que motivou a aceleração da perda cultural do grupo. Embora sem conseguir confirmar "toda a série de horrores que levou Dona Odete a distanciar-se do quotidiano indígena", o realizador conseguiu, em quatro minutos de vídeo, partilhar a perspectiva e a história de Iawa. Esta senhora torna-se, assim, o rosto da realidade actual das tribos indígenas no Brasil.  

O Global Landscapes Forum é uma plataforma que se debruça sobre o uso sustentável da terra e tem como meta alcançar os 17 objectivos de Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas e do Acordo Climático de Paris de 2016. De acordo com Miguel Pinheiro, a nomeação de Dona Odete Kuruaya para o prémio de Landscape Hero decorreu da importância dos povos indígenas como "guardiões de cerca de 80% da biodiversidade mundial". 

Aos modos, costumes e tradições únicos dos povos indígenas, Miguel Pinheiro contrapõe o processo progressivo pelo qual o ser humano está a passar — e que o está a tornar "mais redundante". Para o fotógrafo, no dia em que formos todos iguais, "tombaremos de uma vez só”. “Mas enquanto o céu não nos cai em cima, podemos cuidar da prodigiosa beleza do que ser humano significa”, conclui. É assim que o artista apresenta o propósito deste vídeo. A diferença existe e é, na sua opinião, importante preservar. 

A região de Xingu, onde Iawa vive e Miguel Pinheiro se encontra neste momento, está a ser alvo de transformações. Uma barragem veio afectar as colheitas e a vida dos povos indígenas residentes na área. Dona Odete convive "a duras penas com a terceira maior barragem hidroeléctrica do mundo, que não permite a preservação do seu modo de vida e chega a bloquear o acesso a água potável", explica o produtor. Agora, não há mais ninguém que fale a língua kuruaya a não ser ela. No final do vídeo, Dona Odete deixa a mensagem, em tom de pedido: “Respeitem os mais velhos!”

Texto editado por Ana Maria Henriques