Relatos da caixa de um supermercado: legumes e verduras

Tenho na minha fala aquele factor necessário para sofrer xenofobia e digo que a coisa que mais dói é a frase “volta para sua terra”. As pessoas não fazem ideia do desgaste emocional que é sair de um país que crescemos pelo motivo que seja: do económico ao político. E ainda precisamos de lidar com diferença de tratamento e agressões.

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daniel rocha

O maior drama que enfrento hoje são legumes e verduras. Se é quilo ou unidade, se elas foram regadas ou não. Será que essa está esteticamente bonita? O que é o conceito de beleza para uma maçã? Entretanto, em alguns momentos do dia, entre pensamento irónicos, projecções sonhadoras e algumas couves-de-Bruxelas, o mundo invade a loja com seus habitantes mais inusitados.

Um senhor no seu carro vermelho resolveu não estacionar nos lugares à frente do supermercado, impedindo que outros carros entrassem no estacionamento. O meu chefe foi falar com ele, dizendo-lhe que não poderia fazer aquilo e seguiu-se o início de uma explanação totalmente narcísica do senhor: “Vivo cá, então quer dizer que sou obrigado a parar no estacionamento só para comprar duas coisas?” Nesse meio tempo, um cliente inglês entrou e disse – vou fazer tradução simultânea dos factos: “Sim, o senhor deveria parar no estacionamento, pois outros, como eu, tivemos que parar longe da loja.” O dono do carro vermelho respondeu: “Eu só vim comprar café e chá, dois segundos. Não atrapalhei ninguém.” E o inglês respondeu: “Atrapalhou-me”. Essa conversa aconteceu entre línguas e sotaques, mas os dois entenderam-se perfeitamente. Na falta de uma resposta coerente, o senhor do carro vermelho finaliza a sua indagação com a terrível frase: “Volta para a tua terra.”

Aqui faço uma adenda especial, como filho de Portugal e do Brasil; tenho na minha fala aquele factor necessário para sofrer xenofobia e digo que a coisa que mais dói é a frase “volta para sua terra”. As pessoas não fazem ideia do desgaste emocional que é sair de um país que crescemos pelo motivo que seja: do económico ao político. E ainda precisamos de lidar com diferença de tratamento e agressões.

Voltando para história, o inglês responde: “O meu país é Portugal, aqui crio minha família. Você traz vergonha aos portugueses. ” O Senhor Narciso – como gosto de chamá-lo pagou a sua conta e saiu da loja. O inglês veio pedir-nos desculpa pela confusão e eu só queria abraçá-lo, mas mantendo o distanciamento social disse: “O senhor não tem que se desculpar, vivemos dias estranhos e, infelizmente, esse ódio é alimentado diariamente pelas redes.” O cliente olhou meio espantado para mim e disse: “Pois é.”

Entre racismos, xenofobias e várias situações engraçadas sigo minha saga com um laser de códigos, traduções e datas de validades. Ao subir e descer escadas, os meus pensamentos voam para essas linhas de Word. Chego a casa e preciso lidar com trabalhos do doutoramento, leituras sistemáticas sobre cultura e política. Vou observando o crescimento do Chega nas atitudes dos clientes portugueses. Alguns que só aceitam ser atendidos pelos meus colegas, alguns que se sentem donos da loja, mas também alguns que iluminam, que trazem sorrisos e boas histórias; pretendo contá-las aqui desse meu jeito meio disperso e fantasioso.

Para finalizar com algo da cultura pop, roubo as falas de Albus Dumbledore: “Palavras são, na minha nada humilde opinião, a nossa inesgotável fonte de magia. Capazes de formar grandes sofrimentos e também de remediá-los.” Tenhamos isso em mente: o exercício da empatia, do respeito, deveria ser lei, mas não lei institucionalizada, lei de humanidade, de sociedade. Falando em termos filosóficos, a empatia deveria ser alicerce fundamental na construção dos valores morais.

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