Os EUA não são (nem nunca foram) trumpistas

Apesar de haver muito quem tenha votado em Trump, a maioria não votou nele, votou contra ele. Antes de serem trumpistas, os EUA são anti-Trump.

A recente derrota eleitoral de Donald Trump veio consolidar uma realidade sobre os EUA: Trump não é, nem nunca foi, o preferido pela maioria dos estadunidenses.

Se, em 2016, quando Trump foi eleito, ele já tinha perdido no voto popular por cerca de 3 milhões de diferença, agora, com a derrota face a Joe Biden, essa distância aumentou para 5 milhões.

Não fosse arcaico o sistema eleitoral dos EUA, protector dos Estados rurais pouco populosos e com a regra do “winner takes it all”, há muito que os republicanos não conseguiriam estar no poder.

A verdade é que, das últimas 8 eleições presidenciais nos EUA, 7 foram vencidas, no voto popular, pelos democratas: com métodos proporcionais, G. W. Bush não teria sido eleito em 2000, nem Trump em 2016 (só G. W. Bush em 2004, aquando da sua reeleição, ganhou o voto popular). De resto, Al Gore e Hillary Clinton teriam sido eleitos.

Também ao nível das duas câmaras do Congresso, os métodos eleitorais não proporcionais protegem os republicanos, que tudo têm feito para bloquear qualquer mudança.

Ou seja, só as regras desvirtuadoras da proporcionalidade têm permitido uma governação dos EUA tão à direita. Mas, mesmo com essas regras, as dinâmicas demográficas dos EUA estão a minar as possibilidades do poder republicano.

Olhando para a composição demográfica dos votos, aquilo que se percebe é que as mulheres, os não brancos, os jovens e os habitantes das áreas com alta densidade populacional votam massivamente nos democratas (também assim os mais qualificados, mas de forma menos notória).

Ora, acontece que o progresso faz com que as mulheres tenham cada vez mais voz (votem mais e se libertem do machismo republicano), que os não brancos estejam cada vez mais integrados e participativos (e têm aumentado a sua proporção no país) e que as pessoas se desloquem para a cidade, desertificando o campo.

Mesmo aqueles de quem se disse terem sido os responsáveis pela eleição de Trump em 2016, os trabalhadores brancos, pouco qualificados e ameaçados pela globalização, da “cintura da ferrugem”, votam maioritariamente democrata (só as já referidas distorções permitiram que os republicanos ganhassem nesses Estados em 2016).

Ou seja, apesar de haver muito quem tenha votado em Trump, a maioria não votou nele, votou contra ele. Antes de serem trumpistas, os EUA são anti-Trump. Mais, os que mais o apoiaram foram os homens brancos, que vêem em Trump um protector dos seus privilégios machistas, raciais, religiosos e económicos. Assim, quantas mais mulheres e não brancos tiverem autonomia financeira e cultural, menos apoio existirá para os republicanos.

E mais, não acredito em trumpismo sem Trump: o trumpismo dependia obsessivamente da personagem histriónica Trump e da sua pornográfica ausência de sentido de Estado. Mas, agora, o povo foi claro: o trumpismo é extenuante, catalisador de violência e incompetente (como a pandemia provou).

As mulheres estadunidenses não gostam de ser “agarradas pela passarinha” sem autorização, os não brancos não gostam de ser enxovalhados, discriminados ou asfixiados pela polícia, nem as pessoas urbanas admitem que lhes castrem o modo de vida liberal, ao nível da sexualidade ou escolhas familiares e profissionais. Nem mesmo as grandes empresas aceitam que haja retrocessos ao nível da globalização e do capitalismo liberal.

Isto é, o trumpismo é uma realidade sem futuro histórico.

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