Medicina de catástrofe: quem deixar morrer e de quem tentar salvar

Na escassez de recursos humanos para tratar tantos doentes, temos de tomar decisões sustentadas nos mesmos princípios de triagem, fazer o máximo pelo maior número de pessoas tendo em conta as probabilidades de sobreviver.

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"Ninguém está preparado para isto. Eu não estou e já vi demasiado do que nenhuma pessoa deveria ter visto" Reuters/FABRIZIO BENSCH

Há muitos médicos e enfermeiros que, ao longo da sua vida e da sua carreira, adquiriram formação e competências, aliados à experiência que lhes permitem gerir situações de vida e de morte com uma certa naturalidade. Eu já escolhi deixar pessoas morrer sem pestanejar. Há muitas decisões que assombram a minha prática médica, mas estas não. Decidi que era por um bem maior. O tempo que iria dedicar àquela pessoa interceptando a elevada probabilidade de morrer, e sabendo que outros doentes com mais probabilidade de sobreviver precisariam da minha atenção, conduziu-me a uma decisão, por vezes em segundos (e, sim, isto não é magia, é ciência), sobre quem deixar morrer e quem tentar salvar. Não me magoaram estas decisões. Decidi que não era a minha dor. Não os ouvi sofrer, não sei quem são nem ouvi as dores da sua família, porque estava mentalmente e emocionalmente conectado aos que decidi que poderia salvar.

Estou a falar em contexto de multivítimas, bombas, granadas, ou também grandes acidentes de aviação, onde o desafio na maior parte dos casos é a hemorragia. É de uma frieza que por vezes até me assusta a mim próprio, mas eu sei as regras do jogo. Tenho de perceber as capacidades que tenho, o número de doentes, quem é que fisiologicamente me está a dizer que perdeu mais sangue, e quão difícil é parar a hemorragia de cada vítima. Se for eu a pessoa mais qualificada para fazer esta triagem, não toco em nenhum doente, a não ser que seja uma artéria a sangrar até que alguém me substitua, enquanto não tiver um panorama global de todos os traumatizados, para depois definir prioridades e intervenções. Tem um método, tem muita ciência e requer um estado quase desprovido de emoções.

Chama-se Medicina de Catástrofe. Já o fiz por volta de duas dezenas de vezes na minha vida. Nunca é bonito. Faço o máximo pelo maior número de pessoas possível e sigo a minha vida.

Qual é o paralelismo com a covid-19? Todo e nenhum. Todo, porque, na escassez de recursos humanos para tratar tantos doentes, temos de tomar decisões sustentados nos mesmos princípios de triagem, fazer o máximo pelo maior número de pessoas tendo em conta as probabilidades de sobreviver. E nenhum, porque estes doentes demoram muito tempo a morrer. A característica mais cínica desta doença é a lentidão. Entre o diagnóstico, o internamento e, nos casos mais graves, a morte podem passar dias ou semanas, e isto é uma tortura emocional.

Do ponto de vista do doente e das suas famílias, podem imaginar que cada um terá a sua história. Do ponto de vista de cuidador de saúde, com particular ênfase para os enfermeiros e auxiliares, têm tempo de saber quem são, o que fazem, o seu sentido de humor... Cria-se uma relação muito forte que de alguma forma substitui a enorme solidão que estes doentes passam nos hospitais, para depois deixar o coração aos pedaços no momento de dizer adeus.

E se isto já é doloroso para aqueles em que sentimos que nada mais podíamos ter feito, e foi apenas a doença que foi mais forte do que a medicina no seu “estado da arte”, imaginem a perturbação das pessoas ao saberem que poderão ter de passar por esta avenida tenebrosa porque os hospitais não têm capacidade para mais, e porque a sociedade civil ainda não conseguiu compreender que, se não se diminuir o contacto entre pessoas, muitas que não precisavam de morrer vão mesmo morrer, e que quem sempre cuidou dos outros com carinho vai ficar destruído neste processo.

Ninguém está preparado para isto. Eu não estou e já vi demasiado do que nenhuma pessoa deveria ter visto.

É uma catástrofe lenta e silenciosa, que só é travada se percebermos o nosso papel na sociedade, quer a diminuir os contágios, quer a proteger os mais atingidos por esta terrível crise económica e social.

Este é o maior desafio das nossas vidas. Escolham bem em que parte da história é que querem ficar.

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