Descobrir a música que nos faz chorar

Quando ligou o aspirador e começou a aspirar o apartamento num gesto rotineiro que não era propício a memórias ou emoções, desatou a chorar.

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Nunca foi piegas. Os seus pais devem tê-la visto chorar menos de uma dezena de vezes na infância, e por se ter magoado severamente nalguma brincadeira de rua. Menos de uma dezena de vezes chorou na vida, se não contabilizarmos a fase não-verbal e ainda de fraldas, em que os bebés não fazem mais do que chorar e rir, sem saberem que raio será uma coisa e outra. Na adolescência assistiu e apoiou as crises de choro das amigas, por dores de crescimento ou namoros frustres, as birras infindáveis dos irmãos mais novos, o choro da vizinha de cima, uma mulher ainda jovem, viúva e solitária, quando se cruzavam no elevador, o choro da mãe por ser uma chorona de primeira categoria e que chorava por nada e coisa nenhuma, e até o choro do pai às escondidas na marquise de madrugada, talvez extenuado da vida que tinha, pensando que ninguém o via.

Assistia ao choro dos outros, mas não chorava. Também não falava de coisas que a incomodassem, preferia não o fazer. De modo que se tornou desde cedo uma espécie de confessionário seguro. As pessoas aproximavam-se e contavam-lhe os pecados e desgostos com grande facilidade, e choravam, claro. Não se sentia infeliz ou feliz quando as ouvia. Mas gostava de as ouvir. Fazia-a sentir-se estável, normal, útil até. Por vezes ria-se das pieguices dos outros, mas nunca quando estavam diante de si. Só quando ficava sozinha, o que era, na realidade, a maior parte do tempo. Teve namorados e chegou a amar, mas também não chorou quando a relação mais importante que teve chegou ao fim. Cada um seguiu o seu caminho e pronto.

Um dia, porém, comprou um aspirador. Quando ligou o aparelho e começou a aspirar o apartamento num gesto rotineiro que não era propício a memórias ou emoções, desatou a chorar. Ao som do motor novo do aparelho e inclinada sobre o sofá, com o tubo no vaivém enérgico que requer a limpeza, as lágrimas caíam-lhe. Sem que houvesse um motivo, chorava. E chorava com uma descompressão de águas nunca em si vista. Não parou de aspirar. Continuou afincadamente a recolher os pêlos do gato através do tubo do aparelho. Aspirou o sofá e a casa toda, sempre a chorar. O apartamento ficou todo limpo. Assim que o motor cessou e a casa voltou a ficar em silêncio, as lágrimas estancaram. Como experiência, voltou a ligar o aspirador e as lágrimas recomeçaram, bojudas e fartas. Daí em diante, o aspirador passou a ser ligado mais do que uma vez por dia. Muitas vezes sem fazer qualquer limpeza. Só para ouvir o motor e a estranha música que este fazia. 

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