Vaticano nega ter encoberto abusos sexuais de McCarrick e responsabiliza João Paulo II pela ascensão do ex-cardeal

Apesar de admitir “erros” e “omissões” na informação que lhe chegava, o Vaticano descarta responsabilidades. Relatório indica que o Papa João Paulo II, o Papa Bento XVI e o Papa Francisco tiveram conhecimento dos rumores, mas só em 2018 é que foi pedida uma investigação.

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Theodore McCarrick Reuters/Max Rossi

O Vaticano negou esta terça-feira ter ignorado ou encoberto os abusos sexuais cometidos pelo ex-cardeal norte-americano Theodore McCarrick​, admitindo, porém, que existiram erros cometidos em avaliações feitas com base em “informações imprecisas e incompletas”. O relatório divulgado indica que o Papa João Paulo II promoveu McCarrick a cardeal em 2000, apesar de ter conhecimento dos rumores sobre a sua “má conduta sexual”, e responsabiliza ainda outros funcionários que também permitiram ao ex-cardeal progredir na carreira, não obstante as várias alegações contra ele.

Nas 450 páginas do relatório, suportadas por 90 entrevistas e pela consulta aos arquivos, tarefa que exigiu dois anos de trabalho, a Santa Sé considerou, em particular, que vários bispos norte-americanos há muito que forneciam informações “inexactas e incompletas” sobre a “má conduta” sexual de McCarrick.

Em causa está um escândalo sexual que poderá ter sido abafado pela mais alta hierarquia da Igreja, incluindo três papas sucessivos.

Em relação à carreira de McCarrick, o cardeal número dois do Vaticano, Pietro Parolin, justificou que nenhum procedimento de tomada de decisão da Igreja “está isenta de erros”, porque isso resulta de “omissões”, com graves consequências.

Os rumores sobre os convites do ex-cardeal norte-americano a jovens seminaristas e padres adultos para dividirem a cama consigo, divulgados na década de 1990, e a denúncia feita por um outro cardeal sobre tais abusos não terão impedido o influente McCarrick em ser nomeado arcebispo de Washington, no final de 2000, e a ser nomeado cardeal num processo sob a égide do então papa João Paulo II.

Depois de uma investigação no Vaticano que alertou para o risco de um escândalo sexual, o Papa João Paulo II decidiu confiar em McCarrick, que alegou sempre a sua inocência. O relatório justifica a decisão do Papa com as experiências que teve na Polónia, o seu país natal, onde o governo comunista usava “alegações espúrias contra bispos para denegrir a posição da Igreja”.

O arcebispo tinha, de facto, enviado uma carta ao seu secretário particular, Stanislaw Dziwisz, na qual assegurava que “nunca teve relações sexuais com qualquer pessoa, homem ou mulher, jovem ou velho, clérigo ou leigo”.

A investigação efectuada pelo Vaticano incluiu informações “retrospectivamente incompletas”, levando a “subestimações”, justificou agora Andrea Tornielli, director editorial e de comunicação da Santa Sé.

O talento de McCarrick para angariar fundos monetários para a Igreja por parte de ricos doadores norte-americanos, assim como o seu hábito de dar presentes, “nunca influenciou as decisões significativas feitas pela Santa Sé sobre ele”, indicava o relatório.

Bento XVI e Francisco também souberam dos rumores

Em 2005, surgiram acusações mais credíveis sobre ligações sexuais de McCarrick com pessoas adultas. O novo papa alemão Bento XVI pediu então ao arcebispo de Washington que se aposentasse no ano seguinte, com mais de 75 anos de idade, depois de ter tido conhecimento de informações sobre a conduta de McCarrick. Na aparente ausência de vítimas menores, a Santa Sé optou por não efectuar qualquer julgamento.

Em 2008, três altos funcionários do Vaticano sugeriram que o Papa Bento XVI aprovasse uma investigação canónica “para determinar a verdade e, se tal se justificasse, impor uma “medida exemplar"”. Isso não aconteceu e, em vez disso, um funcionário do Vaticano pediu a McCarrick para “manter um perfil mais baixo e minimizar as viagens para o bem da Igreja”. Como não havia “instruções explícitas do Santo Padre” (Papa Bento XVI), McCarrick manteve as suas actividades públicas.

A primeira denúncia por agressão sexual chegou em 2017 quando o ex-cardeal já estava aposentado e foi deduzida por um homem que tinha 16 anos à data dos abusos alegadamente ocorridos em Nova Iorque, nos anos 1970.

Foi então iniciada uma investigação, com a aprovação do actual papa Francisco, tendo Theodore McCarrick visto o seu título de cardeal retirado no Verão de 2018, antes de ser destituído no início de 2019, uma sanção quase sem precedentes no historial da Igreja Católica.

No Outono de 2018, o Papa Francisco prometeu fazer uma investigação completa sobre os actos praticados por McCarrick, que, durante a sua carreira religiosa, foi bispo de Nova Iorque, Metuchen e Newark (Nova Jersey). O relatório conclui que o actual líder da Igreja Católica soube das “alegações e rumores” sobre o comportamento de McCarrick logo em 2013.

“Acreditando que as alegações já tinham sido revistas e rejeitadas pelo Papa João Paulo II e ciente de que McCarrick esteve activo durante o pontificado de Bento XVI, o Papa Francisco não viu a necessidade de alterar a abordagem que tinha sido adoptada nos anos anteriores”.

Desde então, as associações de defesa das vítimas de abuso sexual por parte de padres não deixaram de exigir conclusões à hierarquia da Igreja Católica.

O relatório sobre a carreira do cardeal norte-americano chegou a motivar duras críticas do prelado ultraconservador italiano Carlo Maria Vigano, que pediu ao Papa Francisco que renunciasse em Agosto de 2018, acusando-o de ter protegido Teodore McCarrick por muito tempo. Enquanto oficial da Secretaria de Estado da Santa Fé, Carlo Maria Vigano escreveu duas cartas exortando os seus superiores a iniciar um procedimento legal na Igreja para investigar as alegações e rumores contra McCarrick.

O relatório sobre o comportamento do ex-cardeal danifica a imagem da Igreja, ao indicar depoimentos de muitas pessoas que alegam ter mantido contacto físico com o prelado norte-americano, descrevendo “abusos e agressão sexual”, “actividades sexuais indesejadas” e outros contactos físicos íntimos.

Para o cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado da Santa Sé e braço direito do Papa Francisco, a sua publicação é “uma dor pelas feridas que o caso causou às vítimas, às suas famílias, à Igreja norte-americana e à Igreja universal”.

Nos últimos dois anos, a Santa Sé colocou em prática uma série de novas medidas preventivas para prevenir e combater os escândalos sexuais na Igreja Católica, obrigando, por exemplo, os padres a denunciarem os seus superiores que pratiquem tais actos abusivos.

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