Lordes chumbam partes da lei de Johnson que violam o acordo do “Brexit”

Câmara alta do Parlamento britânico aprova retirada das cláusulas da legislação que infringem direito internacional. Futuro do diploma não está, no entanto, em risco.

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Manifestante remainer à entrada no edifício onde decorrem as negociações sobre o "Brexit" NEIL HALL/EPA

A proposta de lei do Governo de Boris Johnson para desobrigar o Reino Unido dos compromissos políticos e jurídicos assumidos com a União Europeia e ratificados por ambas as partes no acordo do “Brexit” sofreu uma pesada derrota na Câmara dos Lordes na segunda-feira à noite.

A câmara alta do Parlamento britânico rejeitou as cláusulas da legislação que violam direito internacional (por 433 votos contra 165) e as que dão poderes aos ministros britânicos para decidirem sobre que partes do Protocolo da Irlanda do Norte – anexo ao tratado que selou o divórcio entre o Reino Unido e os 27 – pretendem transportar para ordem jurídica interna (por 407 votos contra 148).

Entre os que se opuseram a estas disposições fundamentais da Lei do Mercado Interno contam-se dezenas de lordes do Partido Conservador, incluindo o antigo dirigente máximo dos tories, Michael Howard.

“O Governo deveria ter bom senso, aceitar a retirada destas cláusulas ofensivas e começar a reconstruir a nossa reputação internacional”, defendeu a líder do Partido Trabalhista na Câmara dos Lordes, Angela Smith.

“Tenho a certeza de que alguns [conservadores] vão reagir com bravata e ignorar as votações históricas desta noite na Câmara dos Lordes. Ao fazerem-no, irão, no entanto, desvalorizar as preocupações genuínas e sérias que existem em todo o país, e para além dele, sobre estes ministros que se estão a colocar acima do Estado de direito”, atirou Smith.

Estratégia mantém-se

Apesar das críticas da oposição e dos resultados das votações na Câmara dos Lordes, não se espera que o executivo conservador venha a ceder um milímetro na sua estratégia. 

Downing Street continua a insistir que a legislação representa apenas uma “rede de segurança jurídica” para “proteger a integridade” do mercado interno do Reino Unido e confirmou que vai voltar a apresentar as cláusulas riscadas pelos lordes na Câmara dos Comuns – onde o Partido Conservador tem maioria e onde a proposta de lei foi aprovada por 340 votos contra 256.

O Governo de Boris Johnson deve, ainda assim, esperar mais umas semanas antes de voltar a levar a lei ao Parlamento. 

Os representantes de Londres e de Bruxelas iniciaram na segunda-feira nova ronda de negociações, tendo em vista um acordo de parceria para a relação económica e política futura entre os dois blocos, e o primeiro-ministro pode não querer usar já essa arma de pressão sobre os europeus.

As conversações prosseguem, é certo, mas num ambiente contaminado pela lei britânica e pela resposta da Comissão Europeia, que enviou uma notificação formal ao executivo de Johnson, iniciando, com esse passo, o processo de infracção ao Reino Unido, por violação dos termos do acordo de saída União Europeia.

Lei controversa

A legislação em causa dá poderes unilaterais ao Governo do Reino Unido para alterar ou para decidir não cumprir os compromissos assumidos com Bruxelas sobre a circulação de bens entre a Irlanda do Norte e o restante território britânico, caso as partes não consigam chegar a um novo acordo até ao final do ano. 

Rejeita ainda a solução ratificada pelos dois blocos para evitarem a edificação de uma fronteira física entre República da Irlanda (Estado-membro da UE e do mercado único) e Irlanda do Norte (pertencente ao Reino Unido) e salvaguardarem os princípios dos acordos de paz de Sexta-Feira Santa (1998), que passava pela criação de uma “fronteira” aduaneira ao longo do mar da Irlanda. 

E também estipula que não haverá quaisquer taxas ou restrições aplicáveis aos produtos que entrem na Grã-Bretanha, vindos do território norte-irlandês.

Todas estas disposições violam partes fundamentais do acordo do “Brexit”, negociado e assinado pelo executivo de Johnson, ratificado pelo Parlamento britânico e pelo Parlamento Europeu e transformado pelo primeiro-ministro britânico em bandeira eleitoral nas legislativas de Dezembro do ano passado – vencidas de forma incontestável pelos tories.

Para além das críticas da UE e dos chefes de Estado e de Governo dos 27 Estados-membros, a lei também merece repúdio de toda a oposição a Boris Johnson e de figuras relevantes dentro do Partido Conservador, como os antigos primeiros-ministros John Major, David Cameron e Theresa May.

Todos eles acusam o Governo britânico de pôr em causa a imagem e a reputação internacional do Reino Unido, ao assumir abertamente que não pretende cumprir os compromissos jurídicos e políticos assumidos num tratado internacional.

O Reino Unido abandonou a União Europeia no dia 31 de Janeiro deste ano, data em que também teve início o período de transição, que dura até ao último dia do ano, e segundo qual os britânicos continuam a gozar de todos os direitos e a ter todos os deveres de um Estado-membro da união aduaneira europeu e do mercado único.

Caso os dois blocos não cheguem a um acordo sobre a sua relação futura, as suas trocas comerciais passarão a reger-se segundo as regras da Organização Mundial de Comércio a partir de 1 de Janeiro de 2021.

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