Dia 117: Precisa-se de um saco de boxe com a cara do vírus para esmurrar

Estou cansada deste ser o tema principal de todas as conversas sociais (tenho saudades de falarmos do tempo!), dos títulos mediáticos clickbait e dos gráficos — já não posso ver gráficos... Das teorias da conspiração e da sensação de que não há como fugir a esta realidade.

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@DESIGNER.SANDRAF

Mãe,

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Quero voltar ao tempo em que não fazia a mais pequena ideia do que era um RH, nem um teste serológico. Em que olhava para imagens das pessoas na China e pensava: “Que horror, como é que podem viver sempre de máscara?””.

Estou farta de acordar com um bocadinho de dor de garganta e fazer imediatamente uma lista mental de quem é que posso ter infectado se, por acaso, for covid-19. E se vão ficar zangados comigo, no dia que que lhes ligar a dizer que o teste foi positivo.

Estou confusa e assustada e vou variando entre uma sensação de “Este mundo embarcou num exagero coletivo” e o “Oh, meu Deus, está tudo inconsciente, como podemos sair de casa e por os outros em risco?””. Ambígua entre o desespero por ouvir medidas que pioram a economia e a preocupação quando não se tomam medidas mais restritas.

Também estou cansada deste ser o tema principal de todas as conversas sociais (tenho saudades de falarmos do tempo!), dos títulos mediáticos clickbait e dos gráficos — já não posso ver gráficos... Das teorias da conspiração e da sensação de que não há como fugir a esta realidade. E se isto não é uma birra, não sei o que será! Enfim, hoje há definitivamente pipocas depois do jantar

Love you,


Querida Filhinha,

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Primeiro e antes de mais nada, estás autorizada a comer as pipocas todas, hoje, amanhã e depois, porque o tempo não está para outra coisa. Atira-te para o chão e bate com as mãos e os pés, como o teu mini E. quando não o deixas levar a prancha de surf para a banheira, porque não tenho dúvida nenhuma de que aquela explosão física ajuda o corpo a libertar-se da tensão. Queres que te arranje um saco de boxe com a cara do vírus para esmurrares? Pensando bem, vou arranjar dois, um também para mim.

Sinceramente acho que do ponto de vista individual ficamos a perder quando civilizamos muito as nossas birras. A raiva, a confusão e o medo que engolimos acabam por nos provocar, no mínimo, úlceras de estômago. E muitos amuos que são mais difíceis de ultrapassar.

Mas Ana, acabo de tomar consciência de que há 117.ª Birra de Mãe, ainda não falámos sobre a anatomia da birra. Aqui vai o que descobri:

Segundo os estudiosos do cérebro, a birra é uma resposta absolutamente natural à ameaça e ao medo. É um daqueles impulsos das cavernas, que salvava vidas. Aparentemente temos incorporado um detector de ameaças, que quando é activado desencadeia imediatamente uma resposta de agressão, enchendo o nosso corpo de adrenalina e cortisol para nos ajudar a atacar (e ganhar) ou a fugir dali (sem que o tigre nos apanhe).

Talvez te interesse saber que o senhor Douglas Fields, investigador no Instituto de Saúde de Bethesda e autor de um livro chamado Why we Snap (“Porque explodimos”), enumerou a lista dos nove grandes espoletadores de birras (e não é “despoletar”, que significa precisamente o oposto, que saudades de ouvir o Mário Resendes, diretor do Diário de Notícias, lembrar-me!).

Salta-nos a tampa em situações de vida ou de morte, quando somos insultados — o “bom nome” é quase tão importante como a vida —, atacam a nossa família, a nossa casa, a nossa cara-metade ou a nossa tribo, ou põem em risco aquilo que nos pertence (os recursos são preciosos e limitados, mesmo que estejamos a falar de um chupa-chupa). A birra oito surge quando alguém ameaça a ordem social, ou seja, sentimos que nos privam do direito à justiça e à liberdade (aquele adolescente “A mim ninguém me cala!”).

Chegados aqui, já deves ter percebido que nesta pandemia, estão presentes todos estes motivos de birras juntos! E, Ana, ainda falta um, que é ainda por cima o maior e o mais frequente motivo de birras: alguém dizer-nos “Pára lá com isso!”, quando já estamos mega zangados, assustados e ansiosos. Bum. Deixamos de responder por nós.

É claro que como o Dr. Field escreveu o livro antes da pandemia, diz que as birras do “stop” são as mais ferozes e frequentes nas crianças e nos adolescentes, porque supostamente o cérebro adulto já desenvolveu a tal capacidade de controlar os seus impulsos pré-históricos. Pois, talvez, às vezes.

Mas eu, depois desta tua carta, não arrisco. O meu recém-adquirido guru garante que, nas crianças, perante uma birra deste tipo não vale a pena apelar a uma parte do cérebro que não está lá — o que corresponderia a gritar com alguém que não nos ouve —, e que a melhor opção é esperar que passe, antes de lhes pedir que sejam “racionais”. Ora, suspeito, que perante este novo mundo tão caótico, todos nós regredimos a essa fase. Não nos digam para não fazer birras, por favor.

Sendo assim, prefiro o Plano B. As pipocas, claro.

E, já agora, está sol! Não é o que querias ouvir?

Love you


No Birras de Mãe, uma avó/ mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, vão diariamente escrever-se, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram

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