Estado de emergência com crime escondido com rabo de fora

Não é verdade que não possa haver consequências criminais pelo incumprimento das limitações à liberdade de circulação.

O actual estado de emergência decretado pelo Presidente da República (PR), ouvido o Governo, que, neste domínio, emite parecer obrigatório, mas não vinculativo, e autorizado pela Assembleia da República (AR), com a duração renovável por períodos iguais e sucessivos de 15 dias, tem de ser regulamentado pelo Governo, órgão de soberania com competência para tal.

Como estão em causa direitos fundamentais, os estados de excepção constitucional – de emergência ou de sítio – importam que a PGR e a Provedoria de Justiça passem a funcionar em sessão permanente, ou seja, pressupõe-se que haja um reforço de meios no sentido de tratarem com maior celeridade eventuais queixas de violação de direitos para além do legislado ou de outros que, de todo, podem em caso algum ser restringidos, como sejam os direitos de defesa do arguido.

Confesso que, quando na madrugada de sábado para domingo, entalado entre um programa qualquer e a declaração de Harris e Biden sobre a vitória da Presidência dos EUA, o primeiro-ministro veio, naturalmente cansado, anunciar as medidas de execução, fiquei perplexo com uma resposta que deu a um jornalista. Perguntava-se-lhe sobre as sanções aplicáveis ao incumprimento do regime do estado de emergência complementado pelas medidas anunciadas: as forças e serviços de segurança verificam o incumprimento e conduzem o prevaricador ao domicílio. Bem esteve no domingo o Ricardo Araújo Pereira a mostrar um autocarro da PSP com o destino “casa”…

Era evidente que ou se tratava de uma desatenção de António Costa, em virtude do cansaço das várias horas de reunião do Conselho de Ministros, ou, o que é mais grave, de não falar toda a verdade à população. Como não faço processos de intenções, não sei aquilatar a motivação. Certo é que assim não poderia ser, sob pena de estarmos em face de uma norma imperfeita: quando se está perante o mais grave patamar que permite limitar direitos fundamentais, não só a Lei n.º 44/86, de 30/9, que regula o estado de sítio e de emergência estabelece a cominação do delito de desobediência simples do art. 348.º, n.º 1, do Código Penal (punível com pena de prisão até 1 ano ou com multa até 120 dias), como, visto o Decreto n.º 8/2020, publicado ontem em “Diário da República”, lê-se no seu art. 12.º, n.º 1, al. b): “Compete  às  forças  e  serviços  de  segurança  fiscalizar  o  cumprimento  do  disposto  no  presente decreto, mediante a emanação das ordens legítimas, nos termos do presente decreto, a cominação e a participação por crime de desobediência, nos termos e para os efeitos do artigo 348.º do Código Penal, por violação do disposto no presente decreto, bem como a condução ao respectivo domicílio quando necessário nos termos do artigo 3.º [proibição de circulação na via pública]”.

Ou seja, se dúvidas existem entre os especialistas sobre se bastaria o art. 7.º da sobredita lei para que o seu incumprimento constituísse crime de desobediência (“[a] violação do disposto na declaração do estado de sítio ou do estado de emergência ou na presente lei, nomeadamente quanto à execução daquela, faz incorrer os respectivos autores em crime de desobediência”), é totalmente claro, neste decreto, sem qualquer incumprimento dos diplomas emanados do PR e da AR, que, se alguém não cumprir as regras de recolher obrigatório ou outras contendentes com a liberdade de circulação, pode haver responsabilidade penal. Bastará, para isso, que o polícia verifique o incumprimento e diga ao cidadão que se encontra em tal situação. E aí, das duas uma: ou ele, voluntariamente, se dirige para o seu domicílio, sem processo-crime, ou o agente/militar informa que o não acatamento voluntário da ordem legítima de autoridade importa a prática do crime de desobediência. E aí, mantendo-se o incumprimento, deve proceder-se à detenção em flagrante delito e à condução do prevaricador ao juiz de instrução criminal (e não ao MP, como normalmente sucederia se não estivéssemos em estado de emergência).

Donde, não é verdade que não possa haver consequências criminais pelo incumprimento das limitações à liberdade de circulação.

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