Educação, Cultura, Política: Carta a Marcelo e Costa

Sem infantilizar o discurso, mostrem as consequências a que o racismo, a anarquia, a dispersão e a alienação conduzem. A covid não justifica a degenerescência da democracia portuguesa que tanto custou a construir.

Há dias universidades e escolas foram vandalizadas com sentenças racistas: “Fora com os pretos” e “Viva a raça branca” são arremedos provincianos que, na pátria lusa, apenas confirmam a nossa tendência para o mimetismo. Há meses a estátua do Padre António Vieira era também vandalizada, não se vendo o ridículo e o atestado de ignorância que tal acto significava. No caso vertente, creio que é sintomático que tais gestos de barbárie ocorram em escolas e universidades, lugares onde deveria imperar a mais sólida consciência cívica, não devendo ser lugar-comum a afirmação de verdades constitutivas do que desejamos que seja uma sociedade democrática. Expressões como “valores de Abril”, ou “Estado de Direito”, usadas, não raro, em celebrações do ego pátrio, colidem com a realidade dos factos. E os factos são estes: na Europa comunitária, “de Direito”, no Portugal contemporâneo, pós-25 de Abril, fez-se tábua-rasa dos pilares da democracia, desde logo porque as instituições e quem as dirige se venderam, desde os anos 80, a um modelo económico em que se empobrece a trabalhar. Na educação as políticas neo-liberais feriram de morte qualquer noção de cidadania porque o alfa e o ómega não é formar cidadãos conscientes, mas sim consumidores. A nova barbárie é antiga: sem humanidades, sem ilustração, apenas é possível o regresso dos bárbaros. Kavafis esperava-os – eles aí estão.

Escolas Secundárias em Lisboa e Loures, Universidades como a Católica e o ISCTE, eis o que nos coloca em face de um problema profundo e vasto e não desvinculado da crise pandémica. Com as medidas de confinamento, de policiamento e cerceamento das liberdades, a crise agudíssima de valores é outra face da crise motivada por este vírus. Há, como muitos dizem, uma violência já não em estado de latência em Portugal, mas visível, palpável. A impressão que temos é a de que “nem rei, nem lei, nem paz, nem guerra / definem com perfil e ser / este pedaço de terra / que é Portugal a entristecer”, como lemos, profeticamente, em Pessoa. Das praxes à violência que a televisão transmite, aos maus exemplos vindos de todos os sectores da sociedade, acumulam-se os casos que fazem perigar as instituições. Com a pobreza, fruto do fecho de centenas de negócios, resta a indignação e o ódio. Os portugueses perguntam-se: os milhares de milhões de euros que a Europa enviará para os nossos cofres, serão eles distribuídos por e para quem quem precisa? Não estão nas filas dos poderes (empresários, bancos, negócios privados, os poderes locais, caciquismo nefando...) os oligarcas da “pequena casa lusitana"? Pode o PS garantir que essa bazuca de milhões criará empregos, ajudará à recuperação social, será mola para iniciarmos uma fase de produção nacional, menos dependentes das importações? Os Espíritos Santos deste pobre rectângulo de dez milhões de cidadãos (e com os mesmos dois milhões de pobres do Estado Novo), não se preparam para enriquecer mais ainda? É, pois, no campo da educação, pilar da identidade nacional que tudo se joga: da paz social futura à competência com que devemos gerir a res publica no presente.

E é de república e de educação e cultura que falamos quando vemos a barbárie como moeda de troca das relações humanas que esta nova sociedade de cotoveladas e máscaras está a criar. Para quem tenha lido Televisão: Um Perigo para a Democracia, de Karl Popper (Gradiva, 1993), o diagnóstico está feito há muito. Como espelho dos media é que devemos interpretar os casos de racismo crescente e de degradação do bem-estar colectivo. Ignorar a responsabilidade dos media é também apagar parte da nossa história colectiva recente e não ver que os modelos dados aos jovens falham em toda a linha. A degenerescência dos conteúdos televisivos, a guerra de audiências abriu as portas ao infantilismo e ao acriticismo mais soez. O grande educador, ninguém o ignora, tem sido, desde os anos de 1960, a televisão. Em Portugal, a década de 1980 marca a sua expansão e, em especial, com a criação dos canais privados, em 1991, inaugura-se uma fase de absolutismo televisivo, com o subsequente abaixamento da qualidade dos programas para ganhar a “guerra das audiências”. A TV e, hoje, o império digital, os grupos multimediáticos (da Google à Amazon, com as irradiações no mercado livreiro) não apostam jamais numa “educação para as massas": espectadores acríticos, alienados da cidadania activa, eis o fito. As democracias, reféns dos mercados só souberam e quiseram oferecer o divertimento estupidificante. Preparam-se agora, por causa da covid, para fechar em casa a nossa vida, como se o vírus só em certas condições se transmitisse. Outro vírus, o do fascismo, prepara-se para tomar poderes vários e tem no confinamento (termo criado por Mussolini) a sua pedra-de-toque... A barbárie, eis o que resulta das políticas de confinamento, agora que o regime democrático se transformou em regime doméstico. Mas nenhuma publicidade, nenhum concurso, nenhuma tele-escola, nenhum ensino à distância poderão conter a fúria dos que nada têm e nada terão mesmo depois da “bazuca”... Isto se o plano de recuperação económica for bloqueado pela corrupção geral.

Senhores Presidente da República e primeiro-ministro, como professor e alguém que, há anos, pugna por uma educação centrada em valores que os mais velhos e uma certa Escola (a de Abril) me transmitiram, aviso-vos quanto às energias destrutivas que estão minando a infância e a juventude; forças potenciadas pela ideologia oca do elogio ao digital. O Chega e outras forças obscurantistas alimentar-se-ão do ódio dessa juventude sem esperança, coartada de relações sociais autênticas. Dirijam-se ao país, urgentemente, mas sem paternalismos serôdios. Ataquem a questão pandémica também no plano das ideias e dos ideais.

Senhor primeiro-ministro e Ex.º Senhor Presidente da República, com o apoio da Televisão (o canal do Estado existe para quê?), sem infantilizar o discurso, mostrem as consequências a que o racismo, a anarquia, a dispersão e a alienação conduzem. Fechados em casa, alienados no mundo dos iPhones dos tablets, vítimas da estupidificação dos algoritmos; seduzidos pelo discurso do banal e do mal, e pelas tristes figuras que pululam na nossa TV e lhes servem de modelos; corrompidos por um sistema de ensino, verdadeiro rolo compressor de formatação de ideias e hábitos, as nossas crianças e adolescentes não lêem, não escrevem bem, não têm imaginação. Que país teremos daqui a dez anos quando os jovens de 15 anos tiverem 25 e os de 25 estiverem já na casa dos trinta...? Que quadros se formaram na ideologia oca e obtusa?

Esta crise pandémica, que os conduz – que nos conduz – à domesticação e à ignorância por via das horas infindáveis que passam nas “redes sociais”, uma vez que não se pode viver, apenas tem para dar o vandalismo... A covid não justifica a degenerescência da democracia portuguesa que tanto custou a construir. Imaginar saídas para as crises faz-se com ilustração, e não, a meu ver, com os indigentes digitais, formados num tempo alienante. Como saberão no futuro próximo defender uma verdadeira democracia? Compete-vos, portanto, ilustrar, explicar, esclarecer – ninguém vos perdoará se a bazuca» significar mais do mesmo. Quem escreveu o ódio nas escolas e universidades não se ficará por aí...

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