Pandemia fora de horas

Suscita perplexidade que o primeiro-ministro escolha as altas horas da noite para apresentar as principais medidas do novo estado de emergência.

A cada dia que passa, um novo recorde nos números da pandemia mostra que o que é mau pode ser pior, e o pior, se não se contrariar decisivamente a propagação do vírus, vai tornar-se péssimo. A estimativa da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares é que na última trincheira deste combate, as camas de cuidados intensivos, possam estar 557 doentes a necessitar de ventilação mecânica. Na quarta-feira eram 373. Existe um total de 892 camas nas unidades de cuidados intensivos.

Antes desta trincheira estão os hospitais sobrelotados, os centros de saúde em colapso, os meios de rastreio exauridos e, claro está, a vida de milhões em permanente sobressalto. A partir de hoje, para uma larga percentagem da população afectada pelo novo estado de emergência, a vida vai ser ainda mais complicada. É o preço a pagar quando todos os meios convocados até agora se mostraram incapazes de achatar a curva.

O Governo prossegue a senda de outros países europeus, colocando fortíssimas restrições à circulação dos cidadãos, nomeadamente o recolher obrigatório, tentando promover o isolamento, a medida mais eficaz, mesmo que terrível para a economia.

Se algumas medidas podem ser objecto de crítica, a necessidade do estado de emergência surge incontornável perante a gravidade da situação, mas só terá pleno efeito se for devidamente apreendida pela população. A comunicação é uma ferramenta fundamental e por isso suscita perplexidade que o primeiro-ministro escolha as altas horas da noite, quando muitos dos portugueses já dormiam, para apresentar as principais medidas.

Embora o estado de emergência seja bem menos “light” do que começou por ser aventado, uma comunicação a essas horas parece mais própria de um estado de sítio do que de um processo que tem vindo a ser paulatinamente preparado pelo Governo e pelo Presidente da República. Pode-se garantir algum dramatismo, mesmo que se sacrifiquem as audiências, mas colateralmente aumenta a sensação de que o executivo está a correr atrás do prejuízo.

Com boa-fé, todos temos margem para perceber que esta luta inédita é susceptível de hesitações e contradições. Mas o elevado preço que todos temos a pagar, a exigência do momento, é cada vez menos compaginável com um Governo que não acerte no tempo certo. Nem se querem atrasos – como, por exemplo, parece acontecer na mobilização de meios para o rastreio – nem se quer a precipitação de comunicações importantes fora de horas. Mesmo que vivamos alguns dos nossos piores momentos, o Governo tem a obrigação de transmitir sentimento de controlo.

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