A eternidade é hoje

Até sempre, Mestre e Amigo, por tudo o que soubeste acrescentar ao que encontraste no começo da estrada.

Isto parece mas não quer ser uma nota necrológica, e sim, em palavras do poeta Rubén Darío, um canto de vida e de esperança desde a tristeza de uma despedida em momentos de tanta e tantas despedidas, uma lembrança de um caminho — o de Cruzeiro Seixas e os 40 do meu próprio caminho que tive o privilégio de fazer a seu lado — e uma homenagem para contradizer o autor de Eu Falo em Chamas quando ele confessava: “Da minha vida nada vai ficar de definitivo, de concluído, de clarificado. Não tive público, nem amigos, nem amor, que verdadeiramente merecessem esse nome. NÃO VIVI, mas, curiosamente, deixarei documentos desse não viver…”. Muito foi o que (nos) deixou desse seu “não-viver” o “não-artista” Cruzeiro Seixas, respondendo às exigências de Rimbaud de ser sempre e em tudo absolutamente moderno, fáustico na procura do Absoluto no ver, no conhecer, no sentir e no dizer.

Desde esse sonho e essa necessidade de Absoluto, Cruzeiro Seixas, como lembrava o professor Moura Sobral, produziu, quase sem querer, uma obra colossal feita de centenas de desenhos, pinturas, colagens, objectos, esculturas, poemas, contos, e cartas pessoais cuidadosa e generosamente ilustradas. E ainda poderia ter acrescentado um guião cinematográfico, e os cenários para a Companhia Nacional de Bailado e para o Ballet Fundação Gulbenkian, e as obras colectivas em que participou, como os cadavres-exquis ou os manifestos e textos de intervenção, e os seus próprios textos de crítica e combate — artigos, textos para catálogos, entrevistas —, e, enfim, o seu trabalho de divulgação da obra de outros mestres e amigos através sobretudo das galerias que dirigiu, trabalho esse que necessariamente acabava a derivar em relâmpagos de intervenção e subversão na paisagem gris-negra do Portugal da época.

"O seu olhar já não se dirige para a terra, mas tem os pés assentes nela", 1953, Casco de pacaça, colagem de papel, guache, madeira e objecto do mar. Doação Cruzeiro Seixas, Coleção Fundação Cupertino de Miranda Cortesia Fundação Cupertino de Miranda
"O quotidiano", 1954. Chávena intervencionada. Doação Cruzeiro Seixas, Coleção Fundação Cupertino de Miranda Cortesia Fundação Cupertino de Miranda
"Personagens duma história de amor", 1960, Chave, colagem, esferográfica, guache, osso e porta-chaves sobre cartolina. Doação Cruzeiro Seixas, colecção Fundação Cupertino de Miranda Cortesia Fundação Cupertino de Miranda
"Um anjo das minhas relações", 1967, Barro, colagem e dentes sobre papel. Doação Cruzeiro Seixas, Colecção Fundação Cupertino de Miranda Cortesia Fundação Cupertino de Miranda
Sem título, sem data, Vela, faca e castiçal. Doação Cruzeiro Seixas, colecção Fundação Cupertino de Miranda Cortesia Fundação Cupertino de Miranda
"No dia seguinte ao nosso casamento", 1967, Guache e tinta da China sobre fotografia colada sobre cartão. Doação Cruzeiro Seixas, colecção Fundação Cupertino de Miranda Cortesia Fundação Cupertino de Miranda
"Navegantes especiais (colaboração de Courbet)", 1975, Óleo sobre impressão montada sobre tela. Doação Cruzeiro Seixas, colecção Fundação Cupertino de Miranda Cortesia Fundação Cupertino de Miranda
"J'ai une fleur", 1955, Fragmento de barro e têmpera sobre platex. Doação Cruzeiro Seixas, colecção Fundação Cupertino de Miranda Cortesia Fundação Cupertino de Miranda
Sem título, 1958. Óleo sobre platex. Colecção Fundação Cupertino de Miranda Cortesia Fundação Cupertino de Miranda
"O Poeta", sem data. Guache sobre papel. Ex-colecção Mário Cesariny. Colecção Fundação Cupertino de Miranda Cortesia Fundação Cupertino de Miranda
Cenário para a Companhia de Bailado da Gulbenkian, 1971. Guache sobre papel. Doação Cruzeiro Seixas, Colecção Fundação Cupertino de Miranda Cortesia Fundação Cupertino de Miranda
"Os convidados recordam Gilles de Rais", 1970. Têmpera sobre papel montado sobre plátex. Colecção Fundação Cupertino de Miranda Cortesia Fundação Cupertino de Miranda
Sem título, 2001. Grafite, guache e tinta da China sobre papel. Ex-colecção Cruzeiro Seixas, Colecção Fundação Cupertino de Miranda Cortesia Fundação Cupertino de Miranda
"O mar português", 1952, Gaiola em madeira e búzio. Doação Cruzeiro Seixas, coleção Fundação Cupertino de Miranda Cortesia Fundação Cupertino de Miranda
"A grande refeição", 1972. Tinta da China sobre papel. Doacção Cruzeiro Seixas. Colecção Fundação Cupertino de Miranda Cortesia Fundação Cupertino de Miranda
Auto-retrato, 1975. Colagem e tinta da China sobre papel. Doação Cruzeiro Seixas. Colecção Fundação Cupertino de Miranda Cortesia Fundação Cupertino de Miranda
Diário Não Diário 3. Técnica mista. Colecção Fundação Cupertino de Miranda Cortesia Fundação Cupertino de Miranda
Diário Não Diário 14. Técnica mista. Colecção Fundação Cupertino de Miranda Cortesia Fundação Cupertino de Miranda
"Da multiplicidade do vácuo", 1976, Têmpera sobre papel colado sobre tela. Doação Cruzeiro Seixas, coleção Fundação Cupertino de Miranda Cortesia Fundação Cupertino de Miranda
"Ruínas da cidade futura - Homenagem a Mário de Sá Carneiro", 1987. Tinta da China sobre papel. Doação Cruzeiro Seixas. Colecção Fundação Cupertino de Miranda Cortesia Fundação Cupertino de Miranda
"O Rapto ou o tão amável intruso", 1972. Óleo sobre platex e papel. Colecção Moderna/ Fundação Calouste Gulbenkian
Sem título, 1944. Grafite em papel. Colecção Moderna/ Fundação Calouste Gulbenkian
"L’oppresseur", 1951. Madeira, obus de canhão, torneira, pena de chapéu, colagem, tinta acrílica. Colecção Moderna/Fundação Calouste Gulbekian
"O 3º combate", 1968. Tinta da China, guache e colagem sobre papel. Colecção Moderna/Fundação Calouste Gulbenkian
"Homenagem à realidade", 1972. Tinta da China em papel couché. Coleção Moderna/Fundação Calouste Gulbenkian
Fotogaleria
"O seu olhar já não se dirige para a terra, mas tem os pés assentes nela", 1953, Casco de pacaça, colagem de papel, guache, madeira e objecto do mar. Doação Cruzeiro Seixas, Coleção Fundação Cupertino de Miranda Cortesia Fundação Cupertino de Miranda

E tudo sem contradizer as reiteradas e públicas manifestações da sua vocação de solidão e de silêncio: “A solidão que é a minha, a construída, a encontrada, a imposta, tem sido a minha estreita prisão, mas também, hoje, já a minha única possibilidade de libertação […] A solidão é uma das plenitudes possíveis.” Um ilhéu — para não dizer uma ilha — que viveu sempre por e para o susto e a alegria da dúvida, da interrogação e da descoberta — "De certezas não se vive: morre-se” — a mergulhar no abismo para encontrar o novo, como pedia Baudelaire: “Alegria imensa dada ao homem só conheço esta de olhar de frente toda a negrura do abismo.” 

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Fotogarfia cedida pelo autor, com o artista Cruzeiro Seixas dr

E essa ilha foi-se povoando desde muito cedo por centenas e centenas de amigos e de vozes convocados por uma imaginação sempre aberta e febril de que foram saindo poemas, objectos, “diários não diários”, pinturas, colagens, assemblages e desenhos com que foi dando vida aos seus bonecos (assim costumava falar com ternura o demiurgo das suas criaturas). E tudo num espaço cósmico extremamente singular, ao mesmo tempo aéreo e submarino, povoado por seres que espalhavam os seus fragmentos em todas as direcções num horizonte também ele fechado e aberto, nocturno e diurno (não era afinal a síntese das oposições o ponto do pensamento que pretendia atingir o Surrealismo segundo o próprio Breton?). Seres umas vezes em movimento — e não poucas vezes com asas e prontos para o voo ou à beira de barcas com mais céu do que mar para a sua promessa de aventura —, outras vezes numa imobilidade de estátua, e uns e outros com frequência cegos ou sem boca (vítimas da realidade real ou variantes dos símbolos tradicionais do conhecimento e do saber mais profundos e verdadeiros), ameaçados ou feridos por pregos, setas, lanças que falam da alegria e da dor do desejo ou da sua perda e ausência talvez definitiva, e paisagens com olhos que espreitam e procuram fechaduras sem portas para esse olhar e chaves para essas portas que as não há, porque é próprio do Poeta não colocar portas e sim abrir e destruir todas as que encontrar no seu caminho.

No fundo, e voltando ao princípio desta evocação, o sonho de revolução total dos surrealistas: revolução individual interior (consciência moral) e exterior (actuação ética); revolução política e revolução social (quando multiplicadas e conjugadas as individuais), e, obviamente, revolução cultural, estética e poética. 

Ou, em palavras do Mestre: “O surrealismo é apenas, para mim, uma filosofia que soube fazer uma longa viagem por outras filosofias, através dos séculos. Nele encontro mais sociologia do que em muitos políticos e sociólogos. A literatura e a arte, é que quase não as vejo ali. Para mim um quadro, ou um livro, será sempre, principalmente, a presença de um homem, (e dos homens), na sua luta de todos os dias. A propósito ou a despropósito, direi que é das piores condenações que o homem tem de sofrer, essa de haver homens que querem pensar por todos os outros homens. Dizem alguns que sou um surrealista ortodoxo na obra que vou realizando; aproveito no entanto a ocasião para esclarecer a quem queira ser esclarecido, que o serei efectivamente, mas tão só enquanto não descobrir uma outra porta, que me leve a um outro espaço. […] Surrealista ou não surrealista? Que importa? A eternidade é hoje — ou não será nunca.”

Artur Manuel embarcou com Mário no seu Navio de Espelhos e navega já à procura do Segredo da Pirâmide. Até sempre, Mestre e Amigo, por tudo o que soubeste acrescentar ao que encontraste no começo da estrada.

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