Homens “grávidos” e doente com 134 anos nos dados de Portugal sobre covid-19

Estudo de uma equipa de investigadores da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto identificou vários erros, inconsistências e omissões nos registos da Direcção-Geral da Saúde. Graça Freitas reconhece que “os dados são de vigilância epidemiológica” e, por isso, não são perfeitos e lembra que há outras prioridades neste momento.

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Médicos têm de preencher processos com dezenas de questões em várias plataformas Rui Oliveira

Três homens e uma mulher de 97 anos registados como “grávidos”, um doente com 134 anos, outro diagnosticado no dia 50 de Maio de 2020, dois doentes com uma “estadia” negativa no internamento do hospital e 19 casos confirmados em datas anteriores ao primeiro caso oficial diagnosticado em Portugal. Estes são apenas alguns dos muitos problemas identificados num estudo de uma equipa de 12 investigadores da Faculdade de Medicina na Universidade do Porto (FMUP) sobre os dados das autoridades de saúde portuguesas sobre covid-19. Esta segunda-feira, a directora-geral da Saúde, Graça Freitas, justificou que estes dados são de “vigilância epidemiológica”, reconhecendo que não são perfeitos, mas sublinhando que “a grande prioridade agora é detectar doentes, tratar doentes e isolar contactos”. 

“Descrevemos algumas questões importantes de qualidade das bases de dados de vigilância portuguesa da covid-19, que podem comprometer a validade de algumas análises, com possíveis implicações graves num contexto de pandemia”, escrevem os autores do artigo publicado a 5 de Novembro na plataforma medRxiv, que divulga trabalhos que ainda não foram revistos pelos pares. Em declarações ao PÚBLICO, Cristina Costa Santos, investigadora da FMUP e uma das autoras do artigo que já foi submetido para publicação na revista Journal of Epidemiology and Community Health, confirma a conclusão sobre a “fraca qualidade” dos dados analisados e que constam na base do Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica usado pelos médicos (SINAVE Med). O alerta para estes erros tinha já surgido em Agosto mas só agora o estudo completo foi divulgado. 

Assim, o trabalho analisa as informações transmitidas pela Direcção-Geral da Saúde (DGS) em dois momentos, uma primeira remessa enviada em Abril e uma segunda em Agosto. Nos dois conjuntos de dados, há vários erros e falhas que, avisa Cristina Costa Santos, podem levar a conclusões erradas sobre a evolução da pandemia em Portugal e, pior ainda, a decisões erradas na resposta a este problema de saúde pública. Há, assim, um alerta e um apelo a fazer: é preciso que os 50 grupos de investigação que estão a tratar os dados fornecidos pela DGS sobre covid-19 saibam que estes dados têm erros, inconsistências e omissões e é necessário alertar as autoridades para os caminhos que podem e devem ser tomados para corrigir o problema da qualidade destes registos.

Erros e dados incompletos

Há vários exemplos de erros no artigo sobre os dados do SINAVE fornecidos pela DGS aos investigadores. “A idade de um doente está provavelmente errada (134 anos)”, lê-se no início de um parágrafo que refere outros problemas: “Havia três pacientes do sexo masculino e uma mulher mais velha (97 anos de idade) registados como grávidas. Há uma data errada de diagnóstico (50-05-2020) e 19 pacientes tinham datas de diagnóstico registadas antes do primeiro caso oficial de covid-19 ter sido diagnosticado em Portugal. Havia também dois doentes com um tempo de internamento negativo no hospital. A variável ‘data de recuperação’ tinha apenas três registos, apesar de se referir a um período de 120 dias: um para 6772 pacientes, em que a data de recuperação foi a ‘3 de Abril’, outro para 1032 pacientes registados a ‘25 de Maio’ e ainda para 242 pacientes em que a data de recuperação foi registada a ‘26 de Maio’”.

Há ainda mais de quatro mil casos no relatório de Abril que não aparecem no documento de Agosto. Por outro lado, há discrepâncias óbvias entre os dados do SINAVE e os dados publicados nos boletins diários da DGS. “Não foram comunicadas quaisquer datas de mortes em Junho no conjunto de dados de Agosto da DGS, apesar das 155 mortes relatadas no relatório público durante este mês”, refere o artigo.

Cristina Costa Santos destaca ainda outro tipo de problemas: os dados incompletos. Do primeiro conjunto de dados enviado pela DGS em Abril para o segundo conjunto enviado em Agosto concluiu-se que, em 40% dos doentes, a resposta à questão sobre doenças pré-existentes “mudou de ‘não’ para ‘não sei’”. O que poderá ter acontecido é que uma primeira resposta em branco foi numa fase inicial interpretada como um “não” e só depois corrigida para um “não sei”, mas termos um doente sem diabetes, por exemplo, não é o mesmo que não sabermos se ele tem ou não diabetes. Qualquer equipa que esteja a analisar e tirar conclusões a partir destes dados vai chegar a um resultado enviesado, alerta a investigadora da FMUP e do Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde (Cintesis).

A investigadora nota que várias equipas de investigadores quiseram ser envolvidas no processo de recolha e tratamento de dados desde o início da pandemia, no entanto, isso nunca chegou a acontecer. Assim, nota, os resultados “não são surpreendentes”. Já se sabia que a base de dados existente do SINAVE estava muito longe de ser perfeita, mas a covid-19 trouxe ao de cima uma série de fragilidades deste sistema. “Estes sistemas nunca funcionaram bem, apenas serviam para desenrascar em situações de doenças de notificação obrigatória, mas com o volume de dados que temos neste momento, com milhares de casos, era necessário um sistema de informação que funcionasse.”

Cristina Costa Santos explica que os médicos são chamados a preencher processos em diferentes plataformas (são, pelo menos, três diferentes), com inúmeros campos para preencher, quando a sua prioridade é obviamente tratar o doente que têm à sua frente. “Não conseguem, não é possível”, constata. “Precisávamos de um sistema que nos ajudasse e, por isso, a academia ofereceu-se para ajudar”, reforça Cristina Costa Santos. No artigo surgem vários exemplos da carga de trabalhos burocráticos que se exige aos médicos, com perguntas que vão desde as características demográficas gerais a perguntas relativas aos sintomas individuais, passando por 10 questões específicas sobre comorbidades e mais de 20 questões para caracterizar os resultados clínicos, a gravidade da doença e a utilização de recursos de saúde, incluindo detalhes sobre o isolamento hospitalar. 

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Rui Oliveira

Além do SINAVE que é usado pelos médicos, existe ainda o SINAVE Lab, que serve os laboratórios, e ainda o Trace Covid-19 (uma ferramenta de acompanhamento para a pandemia de covid-19, de doentes em vigilância e autocuidados). Aos investigadores apenas foram fornecidos (em Abril e depois em Agosto) os dados do SINAVE Med. No artigo, a equipa da FUMP sublinha que foram enviadas várias questões à DGS sobre os problemas identificados na qualidade de dados. E Cristina Costa Santos confirma que, até agora, não tiveram qualquer resposta. “Responderam sempre com muita simpatia aos nossos contactos, mas não tivemos resposta às questões que colocámos. Dizem-nos que estão com muito trabalho e nós percebemos isso. No entanto, estes problemas não são um pormenor. Ter dados de qualidade é decisivo para tomar boas decisões.”

Em Agosto, quando estes problemas começaram a ser denunciados pelos investigadores, a DGS reconheceu os dados em falta e justificou que os médicos não tinham tempo para preencher tudo. Nessa altura, confrontada com as críticas, uma especialista da DGS explicou ao PÚBLICO que o objectivo central do sistema de vigilância epidemiológica é permitir “travar rapidamente cadeias de transmissão para conter a epidemia”. “Essa é que é a prioridade e estamos numa situação completamente anormal, portanto, o trabalho de validação dos dados é menos preciso e menos urgente”, adiantou. Esta segunda-feira na conferência de imprensa, a directora-geral Graça Freitas frisou que estes dados do SINAVE fornecidos aos grupos de cientistas são dados de vigilância epidemiológica e não dados de investigação científica e, por isso, “sabemos que não são perfeitos”. A responsável considerou ainda que “os académicos têm um papel muito importante na apreciação da qualidade desses dados” e que os investigadores podem introduzir correcções e melhorar a qualidade da informação disponível.

Soluções?

Mas será que ainda vamos a tempo de corrigir os erros ou, pelo menos, evitar mais falhas? Cristina Costa Santos acredita que sim. Agora é mais complicado, mas ainda é possível reparar os danos. “Este trabalho serve para mostrar que a qualidade de dados é mesmo má, mas também para dizer que temos de fazer qualquer coisa, estamos sempre a tempo de melhorar”, diz. Até porque, infelizmente, a pandemia da covid-19 não dá sinais de tréguas.

“É preciso definir e implementar grandes melhorias nos processos e sistemas de dados de vigilância: simplificação dos processos de introdução de dados, monitorização constante dos dados, sensibilização dos prestadores de cuidados de saúde para a importância de bons dados e formação adequada dos mesmos. Os processos de tratamento de dados, capitalizando colaborações eficazes e multidisciplinares entre prestadores de cuidados de saúde e analistas de dados, desempenham um papel crítico para assegurar padrões mínimos de qualidade. Com estes processos totalmente optimizados, a fiabilidade dos resultados e a qualidade das provas científicas produzidas podem ser muito melhoradas”, sugerem os autores no artigo, que reconhecem que este problema de qualidade de dados não será exclusivo de Portugal.

Aliás, os investigadores da FMUP fazem mesmo referência a um outro trabalho que detectou erros e discrepâncias nas informações sobre covid-19 após a análise a bases de dados da Organização Mundial da Saúde, do Centro Europeu para o Controlo e Prevenção de Doenças e do Centro Chinês para o Controlo e Prevenção de Doenças e que também foi realizado por cientistas de Portugal. Jorge Bravo e Afshin Ashofteh, autores do artigo publicado na revista Statistical Journal com o título “Um estudo sobre a qualidade das bases de dados do novo coronavírus”, encontraram margens de erro superiores a 40%, valores negativos e muitas outras discrepâncias nas bases de dados.

A investigadora da FMUP pediu os dados sobre a covid-19 à DGS com o objectivo de analisar factores de risco associados a casos mais graves e a mortalidade. O primeiro passo para o seu trabalho de investigação foi precisamente confirmar a qualidade de dados que, segundo a DGS, terão sido enviados a 50 grupos de investigação que os solicitaram. E foi logo aí que o projecto parou e acabou por ser desviado para o artigo agora publicado sobre “Vigilância covid-19 – Um estudo descritivo sobre questões de qualidade de dados”, que se serve de Portugal como caso de estudo. Um mau exemplo, conclui-se.

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