Culturgest obrigada a devolver descontos ilegais que fez a trabalhador

Fundação criada pela Caixa Geral de Depósitos aplicou cortes do tempo da troika a funcionários e dirigentes mas não o podia fazer, diz Tribunal da Relação de Lisboa.

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Fabio Augusto

O Tribunal da Relação de Lisboa condenou a fundação Culturgest a devolver a um trabalhador o dinheiro que lhe descontou do salário durante os anos de austeridade da troika, no pressuposto de que tanto ele como os colegas eram equiparáveis a funcionários públicos. Em causa estão cerca de cinco mil euros, mas a decisão pode abrir a porta a outros colegas do queixoso.

O caso diz respeito a um técnico de audiovisuais que, depois de vários contratos precários, passou a integrar os quadros da Culturgest. Só que uma decisão do conselho de administração da fundação fez com que visse um salário de cerca de 2400 euros brutos encolher – primeiro, 60 euros mensais, mas depois em montantes que chegaram a atingir quase os 300 euros.

Tudo se passou entre 2013 e 2016, e quando resolveu contestar em tribunal os cortes no ordenado o trabalhador tinha consigo outros colegas. Porém, as mesmas juízas desembargadoras que, no final do mês passado, mandaram a Culturgest devolver-lhe mais de quatro mil euros de cortes salariais ilegais e os respectivos juros recusaram reapreciar os restantes três casos, uma vez que estes trabalhadores reivindicavam somas inferiores a cinco mil euros e os tribunais de segunda instância não aceitam recursos em que estejam em causa litígios referentes a somas abaixo deste montante.

No entanto, segundo o advogado que representou o técnico de audiovisuais, Nuno Aureliano, os colegas deste homem – um deles com a mesma categoria profissional e os outros com as categorias de técnicos de luz e de palco – ainda podem beneficiar desta decisão: “Há uma base jurisprudencial para que os trabalhadores afectados possam reagir à ilegalidade cometida, uma vez que os seus créditos laborais não prescreveram.”

Ao PÚBLICO, a Culturgest recusou-se a falar do caso, argumentando que se trata de “um assunto da esfera confidencial entre o empregador e os seus colaboradores”. A fundação limita-se a dizer que “a situação está a ser analisada internamente com toda a serenidade”. Já nos tribunais a instituição cultural esgrimiu argumentos de maior peso, mas que acabaram por ser derrotados depois de num primeiro momento, nas vésperas do Natal passado, o Tribunal do Trabalho de Lisboa lhe ter dado razão.

O cerne da questão residia em determinar a natureza da própria Culturgest, para a seguir se poder perceber se se podiam aplicar ou não aos seus trabalhadores as imposições que recaíram naquela altura sobre funcionários públicos e equiparados, com o objectivo de reduzir a despesa pública e o défice orçamental.

E ao contrário do que tinha concluído o tribunal de primeira instância, os juízes da Relação entenderam que, sendo a Culturgest uma entidade privada, não pode ser classificada como fundação pública, tendo sido por isso abusivo incluí-la, como fizeram os seus responsáveis, no elenco legal de entidades cujos trabalhadores tinham ficado sujeitos aos cortes decorrentes da lei do Orçamento de Estado - como se se tratasse de uma empresa do grupo Caixa Geral de Depósitos.

Alegando que os cortes tinham resultado de “imposições legais”, os advogados da fundação usaram uma segunda justificação para a sua aplicação: a redução significativa do financiamento por parte da Caixa Geral de Depósitos, banco que fundou a instituição e da qual a Culturgest depende para sobreviver. Só que este argumento também não foi bem acolhido. Não só porque no período em análise nem sempre se verificou um decréscimo das dotações orçamentais da fundação, embora essa tenha sido a tendência dominante, como sobretudo porque esta redução de financiamento não legitimava, à luz do Código do Trabalho, cortes salariais – que foram, de resto, aplicados também aos administradores da instituição. O Código do Trabalho proíbe os patrões de reduzirem salários, salvo nos casos previstos neste instrumento legal ou noutros de regulamentação colectiva do trabalho.

“A decisão da Culturgest de aplicar aos seus trabalhadores as leis do Orçamento de Estado e inerentes reduções remuneratórias sob o argumento de que se encontrava submetida a imperativos legais (…) não pode senão perspectivar-se como uma diminuição unilateral da retribuição devida”, observa o Tribunal da Relação de Lisboa, explicando que foi violado o princípio da irredutibilidade da retribuição salarial.

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