Amar sem fantasmas

No fundo, o ghosting é fruto da educação que andamos a dar aos nossos filhos, quando lhes dizemos que são príncipes perfeitos, evitamos que tenham dissabores e lhes fazemos todas as vontades sem os confrontar com o erro ou com o “não”.

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"O ghosting existia, só não se chamava assim. Hoje parece que é mais fácil de fazer" Priscilla Du Preez/Unsplash

Perdoem-me a ignorância, talvez seja da avançada idade, mas eu não sabia o que era ghosting até esta semana, altura em que ouvi a expressão num programa de rádio, no qual os ouvintes se dedicaram a explicar quando e porquê o fizeram; e, há dias, numa crónica neste jornal, em que o autor também partilha as suas experiências.

Para quem não saiba do que se trata, o ghosting é quando nos começamos a interessar por alguém, trocamos umas mensagens, até podemos ir sair e depois desaparecemos, como um fantasma. Aparecemos e desaparecemos sem deixar rasto, podendo deixar o outro na dúvida se é que sequer existimos.

A verdade é que sempre houve ghosting. Depois de juras de amor eterno, uma carta que fica por responder, ficando a vida em suspenso por uns tempos, sem que ela soubesse se o namorado que tinha ido para a guerra morrera ou regressara, até o encontrar de braço dado com outra e uma criança pela mão, anos depois. Era o perder o rasto à rapariga com quem, numa noite no final de Verão, se trocaram promessas apesar de viverem a 300 quilómetros de distância, e telefonar insistentemente até desistir por causa das desculpas dadas pela mãe. A forma mais famosa de ghosting será: “Ele saiu para comprar cigarros...”

O ghosting existia, só não se chamava assim. Hoje parece que é mais fácil de fazer. Na sociedade da rapidez e do imediatismo é simples. Boy meets girl ou another boy ou girl meets girl — não interessa, mas é quase sempre online. Começam a conversar, a conhecer-se, podem trocar mensagens durante dias, meses, até que um dia, o outro diz algo que o interlocutor acha estúpido, desinteressante, alvitrante e, adeus, o contacto é interrompido. Ou passam ao nível seguinte, encontram-se, saem duas ou três vezes, até que ele confessa que adora gelado de caramelo e, puf, ela torna-se um fantasma, porque é alérgica à lactose.

Parece que eles e elas estão de tal maneira habituados ao ghosting que o fazem com uma perna às costas, sem qualquer dor de consciência (os que desaparecem) ou sentimentos de insegurança (os que permanecem na ignorância). I ain’t afraid of no ghost, como dizia a música, e não há qualquer peso para sacudir dos ombros. Parece que tudo é fácil e, talvez por isso, nada é levado a sério. Para quê investir numa relação que vai acabar a qualquer momento? Carpe diem!

Ao ler a crónica de João F. Ribeiro, “Ghosting puxa ghosting, mas ninguém parece g(h)ostar”, compreendi que não se diz nada ao outro para não melindrar, porque o outro pode não estar preparado para a verdade. “Será que somos capazes de lidar com a rejeição à nossa identidade?”, pergunta o autor. No fundo, o ghosting é fruto da educação que andamos a dar aos nossos filhos, quando lhes dizemos que são príncipes perfeitos, evitamos que tenham dissabores e lhes fazemos todas as vontades sem os confrontar com o erro ou com o “não”.

Fiz um esforço para recuar umas décadas e confesso que nunca fiz nem nunca fui vítima de ghosting. Não é fácil dizer que já não dá, que não somos compatíveis, que estamos fartos, que deixou de ser divertido, que o coração já não bate acelerado de cada vez que o outro se aproxima, que os lábios se fecham e o corpo recua.

Em suma, não é fácil dizer ou ouvir que a relação acabou, mas há que fazê-lo para nosso bem e do outro. Para que nenhum de nós fique a matutar, a dar voltas ao que terá corrido mal ou demasiado bem. Para que não nos olhemos ao espelho à procura das nossas imperfeições, porque o outro é que pode estar estragado. Para que tudo fique esclarecido, para que possamos aprender com os erros, voltar a arriscar e amar. Sem fantasmas.

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