Mau tempo em Karabakh: a guerra total contra o povo arménio

A ditadura do Azerbaijão, onde filho sucede a pai e cuja vice-presidência vitalícia está outorgada à sua mulher, e o governo autoritário da Turquia, onde o presidente Erdogan se faz crescer, perante desnorte europeu, em apelos ao nacionalismo como forma de apaziguar a menor popularidade e a crise social, agem com o maior desrespeito pela vida humana.

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Reuters/EVGENIA NOVOZHENINA

Nagorno-Karabakh está, desde 27 de Setembro, sob assalto do Azerbaijão e da Turquia, membro da NATO. A relativa superioridade técnica dos agressores, a pandemia global, a conjuntura europeia e a circunstância da agenda e das eleições nos Estados Unidos concorrem para a oportunidade escolhida deliberadamente.

Não se tratará apenas de ressentimento, aversão ou ódio. Trata-se do remate premeditado da inveterada idiossincrasia otomana. Entre 1915 e 1923, a Turquia perpetrou impune, na Anatólia Oriental, o primeiro genocídio do século XX. O genocídio arménio foi cometido na aparente confusão da Primeira Guerra Mundial contra comunidades pacíficas e empreendedoras, modestamente ocidentais no Oriente complicado, adoradoras de tudo o que de longe ou de perto possa vir a ser europeu e francófilas até ao delírio ou à caricatura. Gente criativa acostumada a ser degolada periodicamente. E, mais uma vez, agora, perante a impunidade criminosa da apatia e do esquecimento de todos.

A guerra do Nagorno-Karabakh designa o conflito ocorrido entre 1989 e 1994, na realidade nunca terminado, nesse enclave de povoação quase exclusivamente arménia. À época, o Azerbaijão tentou sem êxito travar o processo de autodeterminação daquelas terras, tendo iniciado a tentativa de purificação étnica, à semelhança das que aconteciam nessa mesma época na fragmentada ex-Jugoslávia. O parlamento do enclave, num instinto reflexivo de conservação, votou pela unificação com a República da Arménia. E os habitantes, através de eleições comprovadamente democráticas, plebiscitaram, por esmagadora maioria, essa medida. 

Este pequeno agrupamento de gente trabalhadora, que escolheu a democracia, obriga-se a pegar em armas para não morrer, sobrevivendo sob bombas no crescendo de um desastre humanitário. Faltam medicamentos, electricidade, mantimentos, precisamente nestes tempos de pandemia. A ditadura do Azerbaijão, onde filho sucede a pai e cuja vice-presidência vitalícia está outorgada à sua mulher, e o governo autoritário da Turquia, onde o presidente Erdogan se faz crescer, perante desnorte europeu, em apelos ao nacionalismo como forma de apaziguar a menor popularidade e a crise social, agem com o maior desrespeito pela vida humana. Não já somente pela outrora afirmada “raça inferior dos arménios”, mas também pelos cidadãos das respectivas etnias agressoras.

Neste instante, os bisnetos dos sobreviventes do primeiro genocídio do século XX procuram, antes de mais, proteger os seus próprios filhos de catrefas criminosas. Porém, mais do que a noção de um problema regional ou religioso, é preciso ter consciência que esses arménios caem pelas liberdades e seus valores que se querem invioláveis, em qualquer parte do mundo. As próprias ideias de liberdade, igualdade e fraternidade estão inscritas na Constituição e na realidade quotidiana da vida nas ruas da República Arménia e da República de Nagorno-Karabakh. Não é, de forma alguma, o caso nem do Azerbaijão nem da Turquia.

Aqueles que, na indiferença geral, morrem hoje, são mortos pelas mesmas facas que decapitaram um modesto professor em França. Esse corajoso docente estava a dar aulas, elevando os valores fundamentais. Os nossos irmãos e filhos, lá longe no Cáucaso e assim tão perto, caem por causa da humanidade sob a perversa impunidade com que agem os assassinos no meio da multidão, que se passeia de braço dado nas ruas de Paris, Berlim, Londres, Lisboa.

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