Aos 80 anos, João Carlos Martins voltou a poder tocar piano com dez dedos graças a umas luvas biónicas

Encantou as mais respeitáveis salas do mundo com um talento que foi sendo posto à prova por vários problemas que lhe valeram 24 cirurgias e a impossibilidade de tocar. Até que umas luvas biónicas colocaram João Carlos Martins de regresso na rota das estrelas.

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O conceituado pianista luso-brasileiro, comendador da Ordem do Infante D. Henrique, espera regressar ao Carnegie Hall daqui a um ano Reuters/AMANDA PEROBELLI
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“Emocionada até às lágrimas...” Foi assim que a actriz Charlize Theron descreveu, no fim de Setembro, o seu estado depois de assistir a um vídeo, partilhado pela também actriz Viola Davis, onde se vê João Carlos Martins, em lágrimas, a tocar uma peça de Bach no piano, recorrendo a umas luvas biónicas.

A história de superação depressa correu mundo – e não é caso para menos. À BBC News Brasil, João Carlos Martins, de 80 anos, descreveu em entrevista, por Zoom, a sensação de voltar a tocar piano com dez dedos: “Acordo um velhinho de 230 anos e cinco minutos depois sou um garoto de 12 anos.” Um feito possível graças a umas luvas biónicas, desenvolvidas pelo designer industrial Ubiratan Bizarro a pensar no maestro e que, no início do ano, devolveram ao músico a capacidade de brilhar ao piano.

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THIS! ???????? #MondayMotivation #NeverGiveUp ··· "Don't give up, despite all the difficulties" - this is the main motto of Joa~o Carlos Martins @maestrojoaocarlosmartins , the famous Brazilian pianist, one of the best performer of Bach on a par with Gould. Martins started having problems with the muscles in his arms. He had to sleep right before the concert - "in the morning" (after sleeping) the symptoms were disappearing. He went through many operations, and each time it became more difficult to play. In 1995, the pianist survived a bandit attack, as a result of which he received a head injury, and his right hand ceased to obey him. The musician began to play concerts with his left hand. Another unsuccessful operation put an end to Martins' career as a pianist: there was no chance to think about professional performing. However, technologies came to help again. Ubiratan Bizarro Costa designed special prosthetic gloves that return the pianist's fingers to their original position after pressing the keys. Martins need to get used to the new invention, but the musician is sure that soon he will be able to give concerts and record pieces again. ??@tchaikovskyofficial

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O objecto não é recente: Bizarro teve a ideia quando viu uma entrevista a João Carlos Martins na televisão. Mas foi preciso algum tempo e dezenas de protótipos para encontrar a fórmula que permitiu que o pianista mantivesse os dedos esticados. É que, depois da cirurgia realizada em 2018, que acabou com uma dor persistente que sentia desde 1965, o maestro passou a não ter força para abrir os dedos. Algo que a luva biónica (que Bizarro chama de Bionic Extender Gloves e que já começou a exportar para a Europa, segundo indica a Reuters) resolveu.

Um percurso de provações

Filho de um português de Braga, João Carlos Martins destacou-se como pianista desde muito cedo – afinal, contava com o pai como seu impulsionador, uma vez que o piano também tinha sido o sonho daquele; sonho que ficou esquecido quando perdeu um polegar numa prensa, durante o trabalho numa gráfica.

Assim, com apenas 8 anos, João Carlos Martins venceu um concurso de execução de obras de Bach e durante os anos da adolescência destacou-se no concurso da Sociedade Brito de São Petersburgo. A forma soberba como tocava levou a que, com apenas 20 anos, se apresentasse no Carnegie Hall, em Nova Iorque, tendo, a seguir, tocado com algumas das maiores orquestras mundiais e gravado a obra completa de Bach para piano.

Mas a sua carreira viria também a ficar marcada por acidentes que o limitaram e até o impediram de tocar. Em 1965, foi desafiado para um jogo de futebol, com a paulista Portuguesa. A aventura valeu-lhe uma queda, na qual perfurou o braço. O nervo ulnar foi atingido e três dedos sofreram uma atrofia, o que o obrigou a pôr de parte o piano durante um ano. Foi a pensar neste episódio que Jonas, em 2017, dedicou ao músico um golo na Luz frente ao Paços de Ferreira (e que selou a vitória do Benfica por 2-0).

Ao longo dos anos, em que dividiu as suas atenções por outras áreas, vestindo o papel de empresário (de boxe) ou mesmo de político, sofreu vários distúrbios osteomusculares. Mas foi graças ao boxe que voltou à música, segundo contou à BBC News Brasil: “Quando eu vi o juiz levantar a mão dele [do pugilista brasileiro Éder Jofre] novamente, o que me passou pela cabeça? ‘Esse homem reconquistou o título mundial para o Brasil, então quem diz que eu não posso voltar a tocar piano?’ Aquilo ajudou-me.”

Em 1978, regressou aos palcos, para um concerto esgotado em Carnegie Hall. Mas o esforço – o pianista praticava entre dez e 12 horas por dia – resultaria numa lesão por esforço repetitivo. Com “fisioterapias e cirurgias”, acabaria por conseguir voltar mais uma vez e terminar a gravação da obra de Bach. “Finalmente, parecia a vida dos sonhos.”

24 cirurgias

Apesar de muitas contrariedades, tudo parecia correr de feição. Até que, em 1995, dá-se o que parecia na altura ser o golpe final. Em Sófia, Bulgária, é vítima de um assalto, durante o qual recebe uma pancada na cabeça que origina problemas neurológicos que comprometem o funcionamento do braço direito.

As cirurgias conseguem recuperar os movimentos da mão, mas não durante muito tempo. Em 1998, dá o último concerto com as duas mãos: “Depois desse concerto, (…) cortaram-me os nervos da mão direita.”

Mesmo assim, continuou a dedilhar as teclas do piano e, em 2001, grava o álbum Só para Mão Esquerda, escrito por Maurice Ravel para Paul Wittgenstein, que perdeu o membro direito na Primeira Guerra.

O último concerto foi em 2002, em Pequim. Depois disso, recebeu a notícia que o deixou desesperado: nunca mais poderia tocar profissionalmente, nem sequer só com a mão esquerda. Dedicou-se ao ensino, criou a Bachiana Orquestra, tornou-se um reputado maestro, tocando piano, de vez em quando, com apenas os dois polegares.

Minha carreira teve vales profundos e altas montanhas. Eu sempre digo: quando você tem um vale profundo, você precisa ter determinação”, diz o maestro na mesma entrevista.

Até que o designer industrial Ubiratan Bizarro lhe apresentou o caminho para sair do vale. “Quando ele me mostrou as luvas, brinquei que eram para boxe, não para tocar piano”, disse o pianista, citado pela Reuters. As luvas, de neopreno pretas, têm varetas que fazem com que os dedos saltem para cima depois de pressionarem as teclas, permitindo que o pianista continue a tocar, descreve a agência.

“Lembro-me que chorei muito na hora em que toquei [piano com as luvas] porque há 21 anos que eu não encostava os dez dedos no teclado”, lembra o luso-descendente. Agora, concentra-se em praticar pois, segundo a BBC News Brasil, já tem o regresso ao Carnegie Hall agendado: 17 de Outubro de 2021.

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