Eleições made in USA: a loja das bugigangas

Ao ver coisas assim, fico sempre com um enorme orgulho em ser europeu e em existirem valores que, no essencial, não são negociáveis.

Para um país que se constituiu como o Novo Mundo, que apregoa o “sonho americano”, segundo o qual o trabalho árduo compensa sempre, independentemente da condição socioeconómica de base, para um Estado que durante décadas foi ou disse ser o farol do mundo e dos valores ocidentais, “polícia do mundo”, guardião da fidelidade à justiça e à igualdade de todos perante a lei, a imagem que resulta da campanha presidencial e, sobretudo, da contagem dos votos, não podia estar mais longe desses princípios.

Trump tornou a América um anão moral, um país risível aos olhos do mundo, uma surpresa a cada tweet. Tudo se passou como se o ainda Presidente se tivesse armado de uma picareta, tivesse saltado para cima de cerca de 250 anos de História e tivesse escavado avidamente até ao tutano.

E nesse tutano está o conjunto de paradoxos sobre os quais os EUA se construíram: uma cultura esclavagista, racista, contrária ao “elevador social”, machista, onde o americano profundo é, em regra, um ser preocupado em ter mais que em ser mais. Um ser que pouco sabe do mundo e até do seu próprio país ou Estado, mas domina as fofocas locais ou um certo falso moralismo que vai impregnando o tecido social dos EUA.

Naturalmente que, tratando-se de uma federação de Estados, se compreende que cada um deles não tenha o mesmo peso em termos de eleição do Presidente, sendo essa importância proporcional à população. Mas esta eleição também veio demonstrar que este sistema necessita de uma reforma profunda, não apenas no repensar do colégio eleitoral e, eventualmente, dos chamados “grandes eleitores”, mas sobretudo nos modos de voto e no sistema da sua contagem. Uma votação directa também podia ser construída elegendo-se um número de mandatos directos, sem necessidade de intermediação de um colégio eleitoral.

Parece que regredimos séculos e que temos que esperar pelo vapor para contar os boletins, parece que só se podem contar votos a certas horas do dia e que a justiça pode dar algum acolhimento à tese peregrina que, numa eleição democrática, se pode mandar parar a respectiva contagem quando se suspeita – talvez pelo cheiro – que os ditos boletins são democratas. E se permite lançar a dúvida quanto ao número de vezes que alguém pode votar. O correspondente a uma Comissão Nacional de Eleições independente e imparcial já deveria ter vindo a terreiro “pôr os pontos nos is” e garantir que todos os votos regularmente expedidos são para contar.

Acreditar que o Supremo Tribunal do país ou tribunais dos Estados possam tomar decisões em sentido contrário é tão absurdo que apetece rasgar a Constituição dos EUA e todo o corpo de leis. Se tal suceder, em relação a um voto que seja, a credibilidade deste que já foi um grande Estado fica irremediavelmente comprometida e não se diferencia em muito de autocracias como a russa.

É não apenas uma eleição que está em causa e, com ela, o modo como os EUA se vão posicionar no mundo nos próximos anos – do modo errático e esquizofrénico de Trump ou patrocinando uma visão que se espera mais multilateral e aberta de Biden –, mas sobretudo os próprios alicerces do rule of law. Ao ver coisas assim, fico sempre com um enorme orgulho em ser europeu e em existirem valores que, no essencial, não são negociáveis. A uma democracia made in China não se pode substituir uma made in USA. Apesar de tudo, os chineses têm mais experiência com os jogos de sombras…

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