Com tanta “excessão”, ainda corremos o risco de não resistir ao “impato”

Erros como estes não existiam antes do “milagroso” Acordo Ortográfico, que abriu a porta a tais enormidades.

Pelos vistos, não há forma de fugir a isto. No dia em que o Governo anunciou restrições na circulação e na vida quotidiana dos portugueses, devido ao não amainar da pandemia da covid-19, logo soubemos que tais restrições tinham “excessões”. Grandes excessos, daí o aumentativo? Não, excepções, casos em que a regra não se aplica. Só que, como o Acordo Ortográfico resolveu tirar-lhe o P, a passagem de excepção a “exceção” deu-lhe carta-branca para ser… “excessão”. Excesso de zelo acordista, atarantamento ou simples estupidez, a verdade é que erros como este não existiam antes do “milagroso” Acordo Ortográfico, que abriu a porta a tais enormidades.

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Pois na RTP, o único canal de televisão que teima em ter “telespetadores” em vez de telespectadores (como se diz e escreve no Brasil e no resto do mundo lusófono), lá tivemos direito a “restrições com muitas excessões”. Podia ser lapso, ou erro passageiro, mas repetiu-se – portanto, foi mesmo convicção (ou será “convição”?). Não só na RTP, também na CMTV. Assim: “Excessão: surto único”. A par do português escrito com nexo, anda para aí a medrar (talvez com ligeira troca de letras esta palavra fosse mais verdadeira) uma língua estranha, que se rege por sons sem ligar a significados.

Talvez nem seja só por sons, já que também voltaram os “impatos” e os “corrutos”, por “impactos” e “corruptos”. De novo na RTP, numa legenda do programa A Nossa Tarde (e estas “descobertas” devem-se a leitores e espectadores atentos, que as vão divulgando, indignados, nas redes sociais), lá estava esta linda frase: “O impato do isolamento nos seniores”. Sim, senhor, que belo impato. Mas não é de hoje. A Renascença, no dia 12/11/2018, ao anunciar a “actualidade” (sem acordo!) na Edição da Noite, falava do “movimento #MeToo e o seu impato em Portugal”. Ora este insano e repetido “impato” só empata um entendimento digno do português. Apesar disso, vai-se multiplicando sem freio nem emenda. E que dizer do jornal Sol, tão respeitador do Acordo Ortográfico, que nas suas efemérides fala do “muito corruto ditador Xá da Pérsia”?

Voltando às medidas de emergência: cinco constitucionalistas ouvidos pelo PÚBLICO vieram defender “que o Parlamento devia legislar com urgência com vista à criação da figura da emergência sanitária”. Isto porque, segundo um deles, o antigo deputado e dirigente do PS Vitalino Canas, “uma resolução do Conselho de Ministros não é um instrumento legislativo e muito menos tem a legitimidade e robustez para restringir direitos fundamentais”. Não deixa de ser cómico verificar que, neste caso, uma resolução “não tem robustez” nem legitimidade, sendo necessária uma lei, quando o acordo ortográfico nos foi imposto precisamente por resoluções, sem qualquer lei que o legitime. Até há uma lei, na verdade, mas é a que legitima a reforma ortográfica de 1945 – e que continua em vigor.

Mudando de assunto, mas permanecendo na língua. Quem votou, por estes dias, em eleições para escolher entre Biden e Trump? Os americanos? Os norte-americanos? Os estado-unidenses? Os estadunidenses? Na verdade, todos eles. Os dicionários admitem todas estas designações para os habitantes dos Estados Unidos da América, embora as duas últimas sejam usadas quase em exclusivo no Brasil. Porém, como os portugueses adoram copiar modas (e a língua não é excepção), há quem insista que o mais correcto seria optar por estado-unidenses ou estadunidenses, porque americanos seriam todos os habitantes do continente, desde a mais extrema ponta da América do Sul até ao extremo norte do Canadá.

Mas em que América estaria a pensar Allen Ginsberg quando gritou num poema “America I’ve given you all and now I’m nothing!” E quando se canta, em West Side Story, “I like to be in America/ Okay by me in America”? E a que jovens se referia David Bowie em Young americans? E que cidadãos retrata a série televisiva The Americans? E o que seria Carmen Miranda a cantar “Disseram que voltei estadunidencizada”, em lugar de “Disseram que voltei americanizada” no célebre samba de Luís Peixoto e Vicente Paiva? Chamamos reino-unidenses aos cidadãos do Reino Unido? Republicanos-populares aos chineses? É verdade que Estados Unidos só existem hoje os da América. Mas já existiram os Estados Unidos da Venezuela (até 1953), os da Colômbia (até 1886) e os do Brasil (de 1889 até 1968), agora repúblicas. Por isso, será mais avisado chamar aos cidadãos dos Estados Unidos o que eles chamam a si próprios: americanos.

NOTA: Por lapso, corrigido devido à oportuna chamada de atenção de um leitor, os Estados Unidos do Brasil não tinham sido referidos no texto original. Fica feita a rectificação.

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