Prevenir agora para não remediar depois

Era o que nos faltava agora, somar à crise de saúde pública, à crise económica, à crise social e ao que pode ser o início de uma crise política de governabilidade, uma nova crise de ordem pública. É melhor não facilitar.

Com a renovação da situação de calamidade e à beira de nova declaração de estado de emergência, entram hoje em vigor medidas reforçadas de combate à pandemia covid-19. Os últimos tempos têm sido marcados por sinais de desacerto do Governo na concepção e comunicação das medidas, por hesitações do Presidente da República e pelo agravamento de desconfiança e impaciência das pessoas. Adivinha-se uma travessia da segunda vaga de contágios e de pressão sobre as instituições e pessoal da saúde bem mais difícil que a da primeira. Entre o negacionismo ignorante dos que recusam a ciência e a realidade, achando que isto tudo não passa duma gripezinha, e o “afirmacionismo” voluntarista dos novos doutorados em epidemiologia pelo Facebook, que andam à frente dos cientistas e querem toda a gente em casa até que o vírus morra por si, como se o país, as empresas e as pessoas não tivessem amanhã, é essencial que se encontre um meio-termo para as pessoas moderadas, razoáveis e informadas – a maioria que pode fazer a diferença.

O mundo praticamente paralisou em poucos meses e enfrentamos uma crise inédita na dimensão e na gravidade. Morrem milhões de pessoas, as economias colapsam, há uma crise social global. Se isto não for excepcional, nada será. Todos os dias se aprende um pouco mais sobre a pandemia e evolui-se por tentativa-erro-acerto. As pessoas razoáveis sabem que é ridículo exigir que as autoridades públicas não tenham dúvidas nem cometam erros e que os serviços funcionem todos na perfeição. Temos de viver com isso – qual seria a alternativa? É mais fácil mandar umas bocas inconsequentes do que ter a responsabilidade de tomar decisões vitais, com base em informação contraditória, numa realidade que muda todos os dias.

Da minha parte, encontrei o meio-termo em confiar na competência e boa-fé das autoridades, em procurar cumprir todas as recomendações e obrigações de distanciamento social e protecção e em usar máscara e desinfectar as mãos o mais possível. Instalei a aplicação StayAway Covid e pouco me importa se não é perfeita nem 100% eficaz. Tenho o telemóvel cheio de aplicações inúteis e não é esta que me há-de fazer comichão só pela originalidade de ser do contra. Cumprindo cada um a sua parte, chegamos mais depressa ao fim do martírio.

Claro que tem de haver bom senso, clareza e credibilidade nas medidas impostas às pessoas. Claro que os limites constitucionais para a restrição de direitos fundamentais e liberdades têm de ser rigorosamente respeitados. Claro que a actuação das autoridades tem de revelar firmeza e rumo. É esse o grande desafio. Nos momentos mais complexos, não basta fazer o que está certo, é preciso fazê-lo no momento próprio e da forma correcta. Aí é que se vê quem tem fibra e liderança e quem não tem.

A discussão jurídica sobre a legalidade constitucional das medidas em vigor é importante mas não pode ser elevada ao ruído principal. Vivemos numa democracia consolidada, temos uma sociedade instruída, instituições fiscalizadas e um Tribunal Constitucional que já deu no passado boas provas de actuar com sabedoria, equilíbrio e proporcionalidade na composição de valores constitucionais contraditórios. Não vale a pena agitar fantasmas. Com estado de emergência, de calamidade ou de contingência, a actuação das autoridades tem de ser clara, praticável e eficaz, tem de gerar confiança e adesão e não pode criar dúvidas desnecessárias de legalidade, que apenas servem os objectivos daqueles que medram melhor na desgraça e se movem pelo princípio “quanto pior melhor”.

Porque é que isto é decisivo? Porque o problema vai agravar-se e a pretexto da pandemia começam a surgir por esse mundo fora manifestações desordeiras, desobediência civil e acções organizadas de violência, com potencial de contágio. É natural que ao fim de dez meses nisto haja saturação e desespero. Todas as grandes crises trazem radicalismo e irracionalidade. Mas essa não é a resposta. Era o que nos faltava agora, somar à crise de saúde pública, à crise económica, à crise social e ao que pode ser o início de uma crise política de governabilidade, uma nova crise de ordem pública. É melhor não facilitar. Aqueles perigos ainda não chegaram cá, mas não podemos ignorá-los. Olhos bem abertos e pulso firme.

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