O Presidente amigo do Governo

Se nos incêndios do Verão de 2017 Marcelo usou o poder moderador do Presidente para exigir acção e responsabilidade ao Governo, no Outono de 2020 sentiu-se no dever de o proteger de uma forma ainda mais activa do que o habitual

Quem lesse a transcrição da entrevista que o Presidente da República deu esta segunda-feira à RTP teria poucas dúvidas em afirmar que o dono daquelas palavras e daquelas ideias era o primeiro-ministro. Já sabíamos da extraordinária cumplicidade entre Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa, mas com esta entrevista passou-se da cumplicidade tácita para a parceria formal.

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Quem lesse a transcrição da entrevista que o Presidente da República deu esta segunda-feira à RTP teria poucas dúvidas em afirmar que o dono daquelas palavras e daquelas ideias era o primeiro-ministro. Já sabíamos da extraordinária cumplicidade entre Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa, mas com esta entrevista passou-se da cumplicidade tácita para a parceria formal.

O Presidente defendeu sem hesitações as opções tomadas pelo Governo, justificou as suas falhas, enumerou as dificuldades em gerir a situação, serviu-se dos exemplos internacionais para amparar os seus erros e omissões e, não fora o breve remoque às conferências de imprensa da DGS, seria fácil afirmar que Marcelo fez por Costa o que muitos dos seus ministros não fariam. Até na questão da relação com os hospitais privados, matéria em que, bem o sabemos, existe uma fronteira ideológica entre São Bento e Belém, o Presidente tergiversou e condescendeu – e, aí, soou a falso.

Num momento em que o Governo dá sinais de fadiga e desorientação, numa altura em que enfrenta dificuldades no Parlamento e desaires eleitorais nos Açores, Marcelo Rebelo de Sousa faz o improvável e corre em seu apoio. Toda a entrevista teve o objectivo de massajar as dores da governação, de aplacar os seus críticos e de explicar aos portugueses que em pandemias não há nem milagres nem governos providenciais.

Nunca víramos na história da democracia um Presidente tão afeiçoado ao Governo como Marcelo. Principalmente porque essa afeição é reflectida e sentida. Tudo no discurso de Marcelo pareceu intencional. Todas as palavras pareceram servir o propósito de evitar que as fracturas sociais ou políticas da pandemia se agravem ainda mais.

Se nos incêndios do Verão de 2017 Marcelo usou o poder moderador do Presidente para exigir acção e responsabilidade ao Governo, no Outono de 2020 sentiu-se no dever de o proteger de uma forma ainda mais activa do que o habitual. Haverá quem, legitimamente, considere que não é esse o seu papel, que o árbitro do regime existe também para assinalar faltas. Mas a generosidade do Presidente em dar a mão a um Governo acossado por todas as crises merece igualmente outra avaliação. A da importância de resistir a todas as adversidades para se evitarem males maiores.

Mesmo que lhe seja útil como pré-candidato aparecer no papel de apaziguador, esse esforço de acalmação numa sociedade aflita, ansiosa e propensa a desacreditar não deixa igualmente de ser útil ao país. Nas crises agudas, di-lo a sensatez, prova-o a História, nunca tudo é perfeito. Um ambiente de ruptura, de conflito e de desunião serve principalmente para agravar a imperfeição.