Paulo Bonavides, um constitucionalista para o futuro

A nossa dívida é muito grande, pessoalmente; mas maior é a de todos à sua obra. Em tempo de discussão das constituições do Estado Constitucional, a sua lição é insubstituível. Até sempre, Doutor Paulo, nosso xará e nosso Mestre.

Em 30 de outubro, partiu, aos 95 anos, o emérito constitucionalista brasileiro Paulo Bonavides. O reitor da sua Universidade deu a notícia: “O mundo perdeu o seu maior constitucionalista! A Universidade Federal do Ceará está de luto!”

Conhecedor profundo das raízes do Constitucionalismo moderno e dos seus fundamentos políticos e filosóficos, defensor do Estado de Direito democrático e social, adepto da Constituição viva, da principiologia na hermenêutica constitucional, da hegemonia vinculante do Direito Constitucional, e irradiadora para toda a ordem jurídica, pessoa desassombrada e direta, Paulo Bonavides deixa o universo jurídico mais pobre.

A sua biografia, aliás já objeto de livros como os de Antônio Carlos Klein e Dimas Macedo, será naturalmente objeto de glosas nos próximos dias.

Era pessoa simples, como são os grandes: de trato simpático, natural, sem nenhuma afetação. Nem a muita ciência nem a fama lhe deram a volta à cabeça.

Conta-se que ainda quase menino, prestou provas para jornalista num grande jornal, e ficou em primeiro lugar, tendo até chegado a correspondente nos EUA, onde também viria a estudar, na Universidade de Harvard. Começou a carreira docente no ensino médio, ensinando Sociologia. Além de no Brasil, ensinou nas Universidades de Heidelberg, Colónia, Tennessee e na Universidade de Coimbra. Tivemos o gosto de o saudar na atribuição do título de Pesquisador emérito do Instituto Jurídico Interdisciplinar da Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Era doutor honoris causa por múltiplas universidades, entre as quais a de Lisboa.

Professava na prática um constitucionalismo fundamentado, amparado por disciplinas jurídicas humanísticas e pelas ciências sociais. A primeira cadeira que regeu, na Universidade Federal do Ceará, foi Introdução ao Direito. Sempre preocupado com a fundamentação do Direito Constitucional (e do Direito em geral), não apenas política como filosoficamente, podemos ver nas suas escolhas para as teses que apresentou e nas disciplinas que regeu essa procura do mais importante e não do episódico miniaturismo normativista.

As suas teses, significativamente, são: Dos Fins do Estado e o clássico Do Estado Liberal ao Estado Social, que ultrapassou há muito uma dúzia de edições e várias reedições. As suas regências das cadeiras de Teoria Geral do Estado e de Filosofia do Direito (esta no Mestrado) são significativas dessa vontade de não ver de forma míope a juridicidade e a Constituição.

Dos seus principais títulos, todos tratados em grande (e eloquente) estilo, se pode aquilatar que não perdeu tempo, atacando sempre os temas mais nobres e mais importantes: Direito Constitucional, 1980; Norma Jurídica e Análise Lógica: Correspondência Kelsen-Klug, 1984; Política e Constituição, 1985; Constituinte e Constituição, 1986; História Constitucional do Brasil (colab. Paes de Andrade), 1988; A Constituição Aberta, 1993; Curso de Direito Constitucional, 1993; Do País Constitucional ao País Neocolonial, 1999; Teoria Constitucional da Democracia Participativa, 2001; Os Poderes Desarmados, 2002; La Depoliticizzazione della legittimità, 2007; e Constituição e Normatividade dos Princípios, 2012.

O seu verbo era inconfundível. Discursava com uma musicalidade empenhada, dir-se-ia cantante. Não se limitava a ler mecanicamente um texto, como tantos. Era uma força de convicção que dele emanava. A sua longevidade atesta que, sendo de compleição não atlética, era uma força da natureza. Mesmo em alguns dos seus livros se pode ver a vis oratória, não de verbo fácil e fátuo, mas solidamente implantada sobre convicções profundamente meditadas e documentadas durante anos e anos.

Cruzámo-nos muitas vezes. Convidou-nos para congressos constitucionalistas no Ceará, e também nos deu a honra de presidir a um Colóquio na Universidade do Porto. Fomos de propósito à apresentação da sua monumental obra (em colaboração com Paes de Andrade) de História Constitucional do Brasil. Entusiasmado, como sempre, citou longamente de cor Júlio Dantas (falámos depois privadamente sobre Almada Negreiros, noutra ocasião).

Com o então vice-reitor da Universidade de Coimbra Avelãs Nunes, tivemos a honra de ser convidado pelos organizadores da homenagem para estar presentes na inauguração da sua estátua, erigida no Fórum Clóvis Beviláqua, em 2011.

Cremos que sempre que preparava um novo número da monumental revista que fundou e dirigia, a Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais, mandava um convite. Nela temos escrito vários artigos.

Deu-nos a honra de prefaciar dois livros nossos: Constituição, Crise e Cidadania (Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2007), e Nova Teoria do Estado (Malheiros, São Paulo, 2013).

A nossa dívida é muito grande, pessoalmente; mas maior é a de todos à sua obra. Em tempo de discussão das constituições do Estado Constitucional, a sua lição é insubstituível. Até sempre, Doutor Paulo, nosso xará e nosso Mestre.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico​

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