Tancos: primeira missão será descobrir entre os 23 acusados quem diz a verdade

Os acusados do processo de Tancos que junta o assalto ao aparecimento do material de guerra começam a responder por crimes que vão desde favorecimento ou denegação da justiça a tráfico de armas e associação criminosa.

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Azeredo Lopes em Fevereiro de 2020 durante a fase de instrução que decorreu no Tribunal de Monsanto Rui Gaudêncio

No despacho em que sustenta o motivo de levar a julgamento todos os 23 arguidos do processo de Tancos por todos os crimes de que foram acusados, o juiz de instrução criminal, Carlos Alexandre, coloca dezenas de dúvidas e interrogações, e diz que tudo terá de ser escrutinado num julgamento.

O julgamento começa esta segunda-feira no Tribunal de Santarém com a inquirição de João Paulino, que liderou o furto, e outros arguidos, e tem sessões já agendadas até Maio.

Nesse documento de 26 de Junho, Carlos Alexandre diz que perante a natural predisposição dos acusados para baralhar factos, a sua impossibilidade de sustentar defesas convincentes ou de argumentar contra os indícios que recaem sobre eles, só o tribunal poderá clarificar.

Os principais arguidos, pelo seu lado, ansiavam pelo momento chegado de apresentar a sua defesa depois de terem aguardado a longa investigação em que ao processo do furto se juntou o do reaparecimento do material, e ainda uma fase de instrução, na qual apostaram em convencer Carlos Alexandre de que as acusações pelos crimes de associação criminosa e de tráfico de armas eram desprovidas de sentido.

Sem sucesso: dos 23 acusados que se sentam no banco dos réus, a partir desta segunda-feira, no Tribunal de Santarém, só o ex-ministro da Defesa José Azeredo Lopes não é pronunciado – como também já não era acusado –​ de associação criminosa e tráfico de armas.

Azeredo Lopes será julgado por quatro crimes: denegação de justiça, denegação de justiça e prevaricação em co-autoria, favorecimento pessoal e abuso de poderes.

Entre os acusados, destacam-se os responsáveis da Polícia Judiciária Militar (PJM): o major Vasco Brazão, o major Pinto da Costa e o ex-director-geral desta polícia, coronel Luís Vieira, o único militar que ficou em prisão preventiva no Estabelecimento Prisional Militar de Tomar, assim que foi constituído arguido.

Na lista de acusados estão também altas patentes da GNR, o coronel Amândio Marques e o coronel Taciano Correia, ambos responsáveis (em diferentes momentos) pela investigação criminal da GNR. Entre os arguidos a serem julgados, está também o tenente-coronel Luís Sequeira, chefe da Secção de Informações e Investigação Criminal do Comando Territorial de Faro da GNR. 

Associação criminosa e tráfico

Todos os militares estão acusados de crimes de associação criminosa, tráfico e mediação de armas, falsificação e contrafacção de documentos, denegação de justiça e favorecimento pessoal. Sete exerciam funções na GNR e cinco na PJM.

Entre eles, estão seis oficiais, três sargentos e três guardas da GNR, um dos quais trabalhava nos paióis nacionais de Tancos. Sobre este recaem suspeitas de ter passado informações sobre a melhor forma de os assaltantes aí entrarem sem serem capturados na noite do furto.

Também o então coordenador do Laboratório de Polícia Técnica Científica da Judiciária Militar, que não é militar, vê-se acusado dos mesmos crimes.

Serão ou não condenados na medida em que o tribunal conseguir produzir prova de que efectivamente organizaram, participaram, nos termos descritos na acusação, e sabendo que o faziam, à margem da lei, sem o conhecimento do Ministério Público e colidindo com o que fora a sua decisão de entregar a investigação à Polícia Judiciária.

Os restantes arguidos são aqueles que directa ou indirectamente terão entrado no assalto. Estes oito civis e um militar (que trabalhou em Tancos) respondem pelos crimes de associação criminosa, tráfico e mediação de armas e, ao contrário dos militares, de terrorismo e tráfico de outras actividades ilícitas. Neste grupo, o principal arguido é João Paulino, ex-fuzileiro e autor confesso do assalto.

A PJM diz que negociou com João Paulino a entrega do armamento, sem saber que ele estivera anteriormente envolvido em crimes e sem chegar com ele a acordo de imunidade em troca da entrega do material na Chamusca.

Os majores Vasco Brazão e Pinto da Costa garantem que os contactos com Paulino nunca foram directos, mas através da intermediação de elementos do Núcleo de Investigação Criminal da GNR – enquanto homens da confiança de Paulino, em especial Bruno Ataíde, militar do Departamento de Investigação Criminal de Loulé. E insistem que nada prometeram a uma pessoa que nunca viram e não conhecem.

Num processo marcado pelo aparecimento de versões opostas do mesmo facto, a contradição dos protagonistas nos seus depoimentos, e as dúvidas sobre quem afinal diz a verdade, as declarações prestadas em tribunal por João Paulino e Bruno Ataíde poderão ir ao encontro do que diz a acusação, comprometendo a versão da PJM. Mas também ir mais longe e envolver o ex-ministro José Azeredo Lopes no conhecimento de um alegado acordo.

Múltiplas verdades

Dentro da própria GNR, enquanto Bruno Ataíde diz estar convencido de que o plano para a recolha do armamento na Chamusca tinha sido autorizado “ao mais alto nível”, o seu chefe sargento Lima Santos não o acompanha nessa versão.

E se a PJM diz que a GNR tinha conhecimento do plano e suas implicações, Lima Santos argumenta que consentiu na colaboração com a PJM mas sem saber que a operação era feita à revelia do Ministério Público. Por seu lado, os superiores hierárquicos de Lima Santos, um tenente-coronel e dois coronéis da GNR, garantem que tinham conhecimento de uma colaboração entre os dois órgãos de polícia criminais, mas desconheciam o objectivo e em que processo. 

Mais publicitadas ao longo da investigação e fase de instrução foram as versões contraditórias dentro da própria PJM, entre o ex-director-geral, coronel Luís Vieira, e o chefe da investigação, major Vasco Brazão, em quem Luís Vieira confiou a responsabilidade de recuperar o material bélico.

Luís Vieira diz que assumiu a missão para recuperar o armamento – sem o conhecimento das autoridades judiciais –, mas alega não saber como ela foi depois executada no terreno. Vasco Brazão testemunha que tudo fez com o conhecimento do seu chefe, Luís Vieira, a quem transmitia dados o desenvolvimento da operação.

Num outro plano, o coronel Luís Vieira diz que se ele não sabia como os seus investigadores executavam o plano para recuperar o material, também o ex-ministro não tinha forma de saber. Azeredo não saberia que algo de tão organizado se preparava, ultrapassando competências e transgredindo a regra imposta pelo MP, garante o então chefe da PJM.

O que aconteceu, afirmou o coronel Luís Vieira ao longo de vários depoimentos, foi uma tentativa a título pessoal de sensibilizar José Azeredo Lopes da importância de ser a PJM a investigar este caso.

Vasco Brazão, por seu lado, diz que foi mais do que isso. E descreve um encontro que teve com o coronel Luís Vieira e o chefe de gabinete do então ministro, tenente-general Martins Pereira, através de quem Azeredo Lopes terá ficado informado do plano que culminara com a recuperação do material de Tancos.

O major envolve o ex-ministro a partir do dia do anúncio da recuperação do material. Já Paulino e Bruno Ataíde implicam o ex-ministro do Governo de António Costa muito antes disso, ou seja, antes mesmo de o material ser devolvido.

Paulino, segundo o seu advogado Carlos Melo Alves, quererá depor desde já no tribunal. E deverá ser o primeiro a fazê-lo neste primeiro dia do tão aguardado julgamento em que a maioria dos arguidos também quererá falar antes de o MP iniciar o seu trabalho de produzir prova e inquirir testemunhas.

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