Farage e o Partido do Brexit têm uma nova missão: combater o confinamento

Ex-líder do UKIP denuncia resposta “lamentável” do Governo britânico à pandemia, defende restrições apenas para os grupos de risco e quer apostar na imunidade de grupo. Partido eurocéptico passará a chamar-se Reform UK.

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Partido do Brexit foi fundado por Nigel Farage em 2019 e não elegeu nenhum deputado nas últimas eleições Reuters/SCOTT HEPPELL
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Farage foi eleito eurodeputado pelo UKIP e pelo Partido do Brexit Reuters/Vincent Kessler

Cumprida, com sucesso, a missão de retirada do Reino Unido da União Europeia, o dirigente político eurocéptico, anti-sistema e ultranacionalista Nigel Farage encontrou um novo propósito para si e para o ‘seu’ Partido do Brexit: dar voz aos que se opõem ao confinamento como ferramenta de contenção da propagação do vírus SARS-CoV-2 no país.

Num artigo publicado no Daily Telegraph e através de um email enviado aos militantes, no domingo à noite, o ex-líder do partido de extrema-direita UKIP e o presidente do Partido do Brexit, Richard Tice, prometeram “manter um olho bem atento” às negociações entre o Governo de Boris Johnson e a UE, tendo em vista a parceria económica e política futura entre os dois blocos, mas anunciaram que “é tempo de redireccionar as energias” para uma nova causa.

Por isso mesmo, e porque “também é vital para o futuro da nação que haja mais reformas em muitas outras áreas”, sublinharam, já deu entrada na Comissão Eleitoral um pedido para rebaptizar o Partido do Brexit que, se for aceite, passará a chamar-se Reform UK (Reformar o Reino Unido).

O Reino Unido ultrapassou recentemente o milhão de infectados pelo coronavírus, é o país europeu com mais mortes por covid-19 (quase 47 mil mortos) e tem vindo a registar cerca de 20 mil novos casos diários de infecção nos últimos dias. 

Com o Governo britânico a preparar-se para fechar restaurantes, cafés, pubs, ginásios, estabelecimentos comerciais “não-essenciais” e locais de culto de Inglaterra durante quatro semanas, Farage e companhia querem fazer do “anti-lockdown” a sua bandeira política, e agarram-se à “restauração da confiança na democracia” conseguida com o “Brexit” para voltarem a ter palco.

“A questão mais preocupante [a que assistimos] é a resposta lamentável do Governo ao coronavírus. Enfiou-se num buraco e, em vez de admitir os seus erros, continua a escavar”, acusam Farage e Tice.

“Um novo confinamento nacional vai resultar em mais anos de vida perdidos do que aqueles que se pretendem salvar, uma vez que as pessoas com doenças cancerígenas, cardíacas, pulmonares e outras verão os seus tratamentos adiados ou cancelados de novo. Os suicídios estão a crescer. E os negócios e empregos estão a ser destruídos”, criticam os responsáveis do futuro Reform UK.

“Protecção focalizada”

A alternativa que o partido anti-sistema apresenta ao confinamento – seja ele total ou parcial – baseia-se na proposta de “protecção focalizada” promovida pela Declaração Great Barrington.

Este manifesto – da autoria de três académicos das universidades de Oxford, Harvard e Stanford, e apadrinhado pelo think tank norte-americano libertário e pró-mercado livre American Institute for Economic Research – defende que a estratégia dos governos deve passar por criar “imunidade de grupo” na população.

O conceito é, no entanto, muito contestado pela comunidade científica e epidemiológica dominante, que argumenta que o desconhecimento sobre o vírus ainda é demasiado elevado para que se possam retirar “evidências científicas” de que é possível criar essa imunidade.

Em termos genéricos, Nigel Farage defende que as restrições de mobilidade e distanciamento social devem aplicar-se quase exclusivamente às pessoas que façam parte de grupos de risco, como os idosos ou a população com doenças auto-imunes. 

“Através de medidas básicas de higiene e com uma dose de bom senso, o resto da população deve seguir a sua vida. Desta forma, conseguiremos criar imunidade de grupo na população”, explicaram os dois líderes do Partido do Brexit na mensagem enviada aos militantes.

Nessa comunicação houve algumas expressões que pareciam inspiradas no Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump – que Farage elogiou bastante esta segunda-feira, véspera das presidências norte-americanas – como a garantia de que o tratamento para a covid-19 “está a ser cada vez eficaz”, a informação de que a taxa de sobrevivência “está a melhorar” ou a colocação do problema segundo uma lógica de relação temperamental com a ameaça.

“Temos de aprender a viver com o vírus, não nos podemos esconder ou ter medo dele”, afiançaram Farage e Tice.

Rebaptismo esperado

Esta reconversão política e programática do Partido do Brexit já era esperada, ainda que em moldes diferentes. 

No final do ano passado e quando já tudo apontava para uma vitória confortável de Boris Johnson e do Partido Conservador nas eleições legislativas, Nigel Farage revelou que o partido iria mudar de nome e de estratégia assim que o divórcio entre Reino Unido e União Europeia fosse cumprido.

O novo nome seria o mesmo que foi agora escolhido – Reform UK – e a missão não fugia muito da dimensão anti-sistema e populista da mensagem do partido: abolição da Câmara dos Lordes e reforma da lei eleitoral.

Fundado no início de 2019, numa altura que o processo de divórcio entre o Reino Unido e os 27 Estados-membros da UE estava completamente atascado no Parlamento britânico, o Partido do Brexit apareceu na arena política britânica com fortes críticas ao Partido Conservador e ao Partido Trabalhista, por ainda não terem cumprido o resultado do referendo de 2016.

Alimentando-se das fragilidades políticas da ex-primeira-ministra, Theresa May, e do cansaço da opinião pública com a questão do “Brexit”, o partido venceu as eleições europeias de Maio desse ano e forçou os tories a mudarem de estratégia – como já o tinha feito, anos antes, durante o processo que levou David Cameron a prometer um referendo à Europa, com receio do crescimento do UKIP.

Com a substituição de May por Johnson, em Julho, o Partido do Brexit perdeu popularidade, mas não se desviou do objectivo. Assim, na campanha para as eleições de Dezembro, decidiu retirar os seus candidatos dos círculos eleitorais onde poderia haver uma disputa com os conservadores, de forma a não dispersar o voto brexiteer.

Por força do sistema eleitoral britânico, que beneficia os partidos maiores, o gesto acabou por reduzir drasticamente as possibilidades do Partido do Brexiter de eleger deputados para a Câmara dos Comuns. Por outro lado, foi fundamental para a vitória incontestável de Johnson.

Cumprido o “Brexit” no dia 31 de Janeiro deste ano – com Farage como cabeça-de-cartaz dessa noite de triunfo pessoal e político, num palco improvisado em Londres – a mensagem monotemática do partido deixou de fazer sentido e foi por isso que o antigo eurodeputado decidiu avançar agora para um novo projecto.

Ainda é cedo para se perceber que impacto poderá ter o Reform UK no futuro a curto e médio prazo da política britânica ou para se saber se esta mensagem anti-confinamento terá muitos adeptos junto do eleitorado ou até da militância. Mas uma coisa é certa: desta vez o Partido Conservador não vai desvalorizar a capacidade mobilizadora de Nigel Farage. E isso já lhe dá legitimidade para incomodar Boris Johnson.

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