O magro mendigo e o gordo alarve

Por muito que nos custe, as desigualdades sociais só se combatem com políticas públicas redistributivas, de educação, de saúde, entre outras, que devem promover oportunidades idênticas para todos e cada um, independentemente da situação socioeconómica de origem.

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Daniel Rocha

No livro Para além do bem e do mal ou prelúdio de uma filosofia do futuro, da autoria de Friedrich Nietzsche, várias questões existenciais são colocadas após uma crítica assaz à filosofia e aos filósofos da época. Há, entre muitas, uma passagem que diz assim: “Quem enfrenta monstros deve permanecer atento para não se tornar também um monstro. Se olhares demasiado tempo para dentro de um abismo, o abismo acabará por olhar para dentro de ti”.

Não sei nem posso saber o que quis o autor expressar com esta observação, mas sugere-me o cuidado que devemos ter com preconceitos, julgamentos e juízos, por não estarmos livres de em algum momento durante as nossas vidas, podermos acabar no lugar do outro que tanto injuriámos. É por isso que passar de opressor a oprimido ou de oprimido a opressor pode suceder. Basta que as circunstâncias se tornem favoráveis ou desfavoráveis, para que um ou outro cenário se manifeste.

Nélson Mandela esteve preso durante 27 anos devido à sua posição política contra o apartheid. Na cabeça de cada um de nós talvez fizesse sentido que quando libertado e após a ascensão ao poder, encetasse e incentivasse uma luta contra a população branca - afinal de contas, era esta a população que facilmente simbolizaria o encarceramento a que foi sujeito durante uma parte importante da sua vida e que oprimiu a população negra. Não o fez. Considerou que a violência imposta pelos sucessivos governos sul-africanos cujas políticas públicas traduzidas num regime de segregação racial (apartheid) originaram as desigualdades sociais e aumentaram a crispação e a violência, e não necessariamente grupos ou indivíduos, negros ou brancos.

Vivemos tempos em que o exemplo de Nelson Mandela, e de outros, devem merecer que a nossa memória se aclare. As desigualdades sociais e as injustiças devem ser combatidas, absolutamente de acordo. Se a culpa das desigualdades sociais é do cigano que passou hoje ali na rua, se é da minha vizinha que recebe o Rendimento Social de Inserção, se é do guineense que vive ali no bairro, se é da prostituta que está na beira da estrada, ou do homossexual que beijou o namorado na avenida, tenho sérias dúvidas. Se os discursos de ódio proferidos por políticos que incentivam e acalentam cisões, que nos dividem em grupos e nos colocam uns contra os outros como se estivéssemos em claques de futebol também podem ser a solução para as desigualdades sociais? Não me parece.

Por muito que nos custe, as desigualdades sociais só se combatem com políticas públicas redistributivas, de educação, de saúde, entre outras, que devem promover oportunidades idênticas para todos e cada um, independentemente da situação socioeconómica de origem, e que visam a médio/longo prazo equilibrar a sociedade em que vivemos, diminuindo o fosso entre ricos e pobres e rompendo com ciclos viciosos que permitem a reprodução sistémica de privilégios e melhores oportunidades para aqueles que têm mais. Sim, é fácil escrever. Sim, a solução não é assim tão fácil de implementar. Quem está no poder, quem detém privilégios, quem acumulou (ou herdou) riqueza, não quererá naturalmente abdicar dela, fará de tudo para que os seus privilégios se mantenham e naturalmente usará a sua influência para que assim continue nas gerações que se seguem.

Se este equilíbrio social se consegue com uma ditadura, a história mostra-nos o contrário - que as ditaduras tendem a extremar ainda mais as desigualdades sociais, protegendo um núcleo restrito de famílias privilegiadas, remetendo a maioria da população para uma situação de miséria e pobreza, acentuada pela baixa escolaridade e ausência de liberdade de expressão, estagnando qualquer expectativa de mobilidade social, e que, embora assuma contornos diferentes em realidades distintas, os meios tendem a conduzir aos mesmos fins.

Em tempos complexos e exigentes, nos quais a vulnerabilidade social poderá conduzir ao desespero e o desespero levar a que as vozes que prometem soluções milagrosas e imediatas façam sentido, é necessário que a convicção que nos move não seja o ódio ao “outro”. Somos peões, e é velha a máxima “dividir para reinar": quanto mais divididos estivermos, mais distraídos nos manteremos com lutas inglórias que contribuem apenas para aumentarmos o ódio e o preconceito para com os nossos vizinhos quando deveríamos estar comprometidos em pressionar os governantes a encetarem medidas que contribuam para melhorar a vida de todos.

O problema não está no cidadão comum e a solução também não está nas divergências que esta maioria alimenta entre si, manipulada por representantes da alta corte que usam a culpa do magro mendigo como escape para distrair as atenções do gordo alarve. A solução passa por nos unirmos na defesa e no reconhecimento dos direitos que regem a nossa vida colectiva e no combate aos mecanismos estruturais que estão na origem das desigualdades que cavam os destinos dos que não têm direito a sonhar. Sim, há muita pobreza entre nós e ela está documentada.

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