O Gambito da Rainha é muito mais para além do xadrez

Apesar de no xadrez se poder empatar, ninguém joga para empatar. O xadrez é uma questão de vida ou morte, jogando-se num tabuleiro toda a nossa sobrevivência intelectual, toda a nossa reputação intelectual. Perder não é opção, nunca foi. Perder é cair de joelhos no meio da arena.

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O Gambito da Rainha é uma série de sete episódios da Netflix, acabadinha de se estrear. Vimo-la de uma assentada num sábado de chuva como são todos os sábados de chuva neste país. 

Sendo um apaixonado pelo xadrez, a escolha desta série não foi apenas óbvia, mas propositada, aliando o útil ao agradável quando se tem o luxo de um dia inteiro por preencher.

Pelo que vi, a tradução para português na Netflix Portugal é O Gambito da Dama. Não concordo. Retira o sentido não apenas à série mas à personagem. Traduzindo directamente do original The Queen’s Gambit, evidenciamos de imediato o cerne da história, a história de uma criança, e depois jovem adulta, que quer reinar num mundo do xadrez inevitavelmente masculino.

Apesar de no xadrez se poder empatar, ninguém joga para empatar. O xadrez é uma questão de vida ou morte, jogando-se num tabuleiro toda a nossa sobrevivência intelectual, toda a nossa reputação intelectual. Perder não é opção, nunca foi. Perder é cair de joelhos no meio da arena. Em 64 quadrados encontramos orgulho, vaidade, altivez, paixão, mas também sofrimento, rancor, a desonra, a vergonha, crescer e ganhar, perder e aprender a viver.

Todos estes sentimentos dão azo à história prestes a desenrolar-se diante dos nossos olhos na pele de Beth, uma criança órfã cujo genoma matemático predispõe-na para se tornar um prodígio no xadrez. Mas Beth tem muito a aprender e a aprendizagem está intrinsecamente ligada à vida e à experiência de viver. Há vida para além do xadrez e o xadrez não é apenas um jogo, é um momento a dois.

O meu avô ensinou-me a jogar xadrez. Passávamos tardes inteiras a jogar. Pacientemente. Saboreando o tempo, o luxo do tempo, ter o tempo diante um do outro. As jogadas, metódicas, eram pensadas mil vezes e de vez em quando discutidas com o adversário tal como no fim de cada jogo. E sendo a minha mãe professora de matemática, não será por acaso este gosto pela geometria, pela estratégia, a precisão e planificação, tudo características por demais úteis ao longo de uma vida. 

Se hoje sou quem sou, paciente, metódico, organizado, devo-o ao xadrez, mas antes do xadrez ao meu avô. Porque o xadrez também é um jogo de cavalheiros e o meu avô era, sem sombra de dúvida, um desses cavalheiros sem interesse algum em perder ou ganhar, apenas jogar pelo prazer de jogar, pelo prazer da companhia na bonomia das tardes de fim-de-semana, nas férias ou no Verão.

Mas tendo eu um mau perder de proporções míticas desde tenra idade, o meu avô crescia de cada vez que me ganhava, anunciando para a família toda a sua vitória enquanto esta criança, que ainda sou, batia com a porta do quarto e se trancava lá dentro a morder os lençóis. Eu nunca seria o mesmo cavalheiro, antes um guerreiro na arena preta e branca a defender a vida de espada em punho.

E se, por um lado, ganhei um torneio de xadrez na escola, por outro a velocidade das partidas não é senão o retirar da componente humana tão essencial ao xadrez, transformando-nos em máquinas de jogar onde a única motivação é ganhar, ser melhor que o adversário. 

No mundo do xadrez retratado em O Gambito da Rainha, é inevitável assistir a esta máquina de ganhar em que Beth se transforma, descarregando nos adversários as emoções de uma vida curta mas tão cheia. Mais não posso dizer, aqui deixando o convite à visualização desta série. 

Minto, deixo aqui a consciência plena de querer trocar todas as vitórias no xadrez para poder jogar uma vez mais, apenas uma vez mais, com o meu avô ao longo de uma tarde sem fim, uma daquelas tardes que só acaba quando eu ganhar, a teimosia de uma criança, mas desta vez não, desta vez eu quero perder tudo, mas mesmo tudo, só para ficar contigo. Não te vás embora.

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