Em Priscos, o dia de Todos os Santos aproximou os que estão dos que já foram

Na freguesia do concelho de Braga, a comunidade levou fotografias dos entes queridos já falecidos para a missa que assinalou o 1 de Novembro. A ideia do pároco João Torres quis relembrar os que já partiram e também impedir concentrações no cemitério. No maior cemitério do concelho minhoto, houve mais movimento, mas “ordeiro”.

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“Com esta iniciativa, estamos a rezar, juntos, por aqueles que nos habitam”, clama o padre João Torres à comunidade de Priscos. São cerca de 150 os crentes que o ouvem, atentos, em silêncio, na eucaristia que começa no pavilhão desportivo daquela freguesia, no concelho de Braga, um dos que abriu os cemitérios no Minho. Adolescentes, adultos e, sobretudo, idosos ocupam as cadeiras espalhadas sobre o piso esverdeado do recinto e a bancada. O espaço vocacionado para o rito católico é a igreja, mas, em Priscos, é o pavilhão é o palco das celebrações em tempos de pandemia, após o Governo ter permitido o regresso das celebrações religiosas, a 30 de Maio. A deste domingo, dia de Todos os Santos, tem uma nuance: ao pé do altar improvisado, a saudade está emoldurada: são 34 fotografias de pessoas já falecidas, ali colocadas por entes queridos presentes nas cerimónias. “As pessoas estavam silenciosas”, descreve ao PÚBLICO o pároco, autor da ideia. “E há palavras que tocam lá mais no fundo. Quando eu digo que há muitos rostos que habitam em cada um de nós, eu acredito que as pessoas viajam nos rostos que fazem parte da vida delas”, sugere.

A ideia procurou evitar as concentrações de pessoas no cemitério de Priscos, habituado a encher-se de gente a cada 1 de Novembro, logo após a eucaristia das 9h. E a inspiração adveio de um filme de animação: Coco, que explora a ideia de que “os falecidos regressam se as famílias se lembrarem deles”, inspirada na cultura mexicana, refere o pároco. “Ao lembrar-me de alguém, impeço que esse alguém morra para sempre em mim. Face às muitas contingências nas idas aos cemitérios, surgiu esta alternativa para que as pessoas estivessem juntas dos entes queridos, em segurança”, explica.

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Os crentes pareceram sintonizados no cumprimento das normas de segurança. Alguns chegaram ao pavilhão às 8h30 para rezarem o terço que antecede a eucaristia, sentados ou até de joelhos. Nas duas portas de acesso, os voluntários desinfectavam as mãos dos crentes, que chegavam em maior número ao pavilhão, à medida que se aproximava a cerimónia. Um deles foi José Manuel Araújo, cidadão de 58 anos nascido em Famalicão, que se mudou para Priscos há cerca de 30, após casar. Habituado a colaborar com a paróquia, quer na assistência às pessoas mais velhas, quer como ministro da comunhão nas missas, José frisa que a ideia das fotografias foi bem acolhida pela paróquia. “É uma forma de não haver um vazio. Até à data, não vi ninguém da comunidade manifestar-se contra. As imagens trazem-nos recordações que já iam ficando afastadas”, salienta.

“Foi como estar à beira do túmulo”

Enquanto José Manuel caminhava sobre o altar, pegando, o grupo coral cantava atrás de si. E uma das coristas era Maria de Fátima Pinto. Ao contrário de José Manuel, que não levou qualquer imagem, a paroquiana, de 74 anos, colocou junto ao altar um retrato da mãe, Teresa Pinto. Não a pôde ver durante a cerimónia, mas sentiu-a mais perto. “A gente nunca se esquece, mas ter ali a fotografia dela e saber que está à minha beira é especial”, confessa.

As celebrações católicas mudaram-se em Junho para o pavilhão desportivo, com a colaboração da Junta de Freguesia de Priscos e do Clube Desportivo e Cultural de Priscos, que utiliza o pavilhão. Maria de Fátima Pinto enaltece a união da paróquia, palpável na disponibilidade das pessoas para montarem o altar para as missas do fim-de-semana, desmontando-o depois. “Este estrado foi feito para isto, mas, agora que começaram os treinos, é arrumado. Dá um bocado de trabalho, mas sem trabalho nada se faz”, diz.

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Esse espírito, acrescenta, também se vê no Presépio Vivo, iniciativa em curso desde 2006, que não se realiza neste ano. Ao lado, outra Maria de Fátima, Costa, concorda que a paróquia é unida, mas vinca que essa união é insuficiente para “preencher o vazio” deixado pelos que partiram. “Trazer fotos ainda mexe mais com a gente. Ainda ficamos mais abalados”, diz, entre lágrimas. Três das fotos expostas eram suas: a da avó Eva Couto, falecida há 37 anos, ainda a preto e branco, a do pai, João Barroso, que morreu em 2008, e a do marido, Joaquim Araújo da Costa, que morreu a 18 de Janeiro de 2019, com um tumor na cabeça, aos 62 anos. Para Maria de Fátima Costa, as fotografias aproximaram-na mais dos entes que já partiram, sem se deslocar ao cemitério. “Foi como estar à beira do túmulo deles”, descreve.

Amenizar a saudade… também no cemitério

A eucaristia matinal foi, no fundo, uma tentativa de viver a saudade em conjunto, um sentimento “sempre mais forte nestes dias”, resume João Torres. A partilha da saudade, acrescenta o padre, pode ajudar os habitantes de Priscos a mitigarem a solidão a que a pandemia os pode sujeitar, principalmente os mais velhos. Com a igreja somente capaz de acolher 18 pessoas mediante as normas da Direcção-Geral da Saúde, o pároco decidiu transferir a eucaristia para o pavilhão, espaço que a faixa mais idosa da população pode frequentar com segurança. “Muitos filhos vieram aqui verificar se havia condições para os pais, de 70 ou 80 anos, poderem vir às eucaristias”, diz.

Para o sacerdote, esta alternativa à romagem ao cemitério pode ainda fortalecer a “memória colectiva” de Priscos, onde as pessoas se afirmam em “comunhão com as outras”, tal como acontece com o Presépio Vivo, evento criado por sua iniciativa, em 2006.

Houve, no entanto, quem não tenha abdicado da ida ao cemitério. À saída do pavilhão, onde as fotografias dos pais estavam expostas, Isabel Sá, de 51 anos, realçou que a eucaristia a fez pensar ainda mais nos familiares já desaparecidos, que repousam no cemitério. “Durante a cerimónia, olhei para eles, mas não me quis aproximar, pois a dor e a saudade são permanentes. Ainda vou ao cemitério”, prometeu.

À beira da igreja, o exíguo cemitério de Priscos estava vazio. Nem sequer uma dezena de pessoas caminhava pelo corredor de granito entre as campas dos Sá, dos Araújo, dos Martins, dos Vilaça e dos Ferreira. Uma delas era Joaquim Pereira, de 58 anos, que ali se deslocou mal terminou a cerimónia. “Fui à cerimónia e agora vim aqui ver o meu pai, o meu cunhado, os meus avós, tios, primos e amigos. Nos outros anos, costumava haver muita gente a seguir à missa”, recorda.

Um ramo de rosas e orquídeas

O contraste com Priscos era evidente no cemitério municipal Monte d’Arcos, o maior de Braga: as pessoas entravam a saíam em ritmos similares, sem confusões, nem aproximações. Um corredor gradeado controlava as entradas para um recinto limitado a acolher um máximo de 250 pessoas em simultâneo. E ninguém poderia ficar no interior por mais de uma hora. Nove elementos da Polícia Municipal supervisionavam a circulação. Para o coordenador da área operacional do corpo policial, a romagem ao cemitério decorreu de “forma bastante ordeira” desde a abertura, às 8h. “As entradas e saídas de pessoas são proporcionais. Nunca houve filas superiores a 20 pessoas, número aceitável para um dia destes”, diz ao PÚBLICO Nuno Ribeiro.

No largo contíguo ao cemitério, vêem-se duas zonas com bancas de flores, a tentarem vender os últimos arranjos destinados às campas dos que já foram. A afluência de clientes é escassa, contudo. “É um tédio”, diz Pedro Duarte, proprietário da Helena Florista, estabelecimento com o nome da mãe, que trabalha há cerca de 40 anos no local. “As vendas caíram cerca de 60%. Hoje, costumava ser um dia para andar aqui aos encontrões”, afirma. A quebra não se reflecte apenas na quantidade de flores e de velas que vende. Também se vê nos arranjos procurados, mais pequenos e baratos. “Quando perguntam por um arranjo grande, as pessoas estão sempre a tentar baixar o preço”, refere. Tal como em anos anteriores, as flores mais procuradas são o crisântemo, a margarida, o lírio, a gerbera e a rosa.

É de rosas brancas e de orquídeas azuis que se faz o ramo que Rafael Rodrigues depositou na sepultura do pai, Domingos da Silva Rodrigues. “Ele gostava muito das cores azul e branca. A campa dele é clara e simples, ao jeito da pessoa que ele era”, indica. Emigrante em Paris desde os 17 anos, Domingos tencionava regressar à cidade onde nasceu no próximo ano, quando estivesse reformado, mas morreu em Agosto, com 60, vítima de um ataque cardíaco. Nascido em França, Rafael, de 27, só pôde ver a campa do pai pela primeira vez, porque, logo em Agosto, tirou o bilhete de avião para Portugal. “Em França, está tudo confinado em casa. Houve pessoas que não puderam vir, porque as autoridades francesas já não deixam ninguém sair do território há uma semana”, explica.

Ao deparar-se com a campa do pai, Rafael Rodrigues sentiu um misto de tristeza e de alívio, pois a vontade do pai – o de ser sepultado em Braga – foi cumprido. A memória de Domingos está guardada numa campa individual, restando agora esperar pela possibilidade de o reunir com os seus pais. “Ele queria ficar ao pé dos pais. Temos de esperar alguns anos para mudar”, desabafou.

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