O aborto, o relâmpago e a covid-19

Esta luta é de todos os que lutam para verem os seus direitos legalizados; é por um mundo que não devia permitir que mais mulheres morram por serem obrigadas a fazer abortos ilegais e que devia aceitar as escolhas dos outros e não impor a sua única vontade.

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Reuters/KACPER PEMPEL

É raro não ter palavras para explicar o que sinto. Mas não há palavras que caracterizem a nova lei sobre o aborto na Polónia. Não tenho palavras porque, para falar, tenho que falar em nome da Ana feminista, defensora dos direitos humanos, residente permanente na Polónia, e cuja lei a afecta por ser mulher.

Desde o dia 22 de Outubro, o governo polaco encurtou as leis sobre a legalização do aborto. Se já era um dos países mais restritos sobre o tópico, agora decidiu limitá-lo ao ponto de que o aborto passa a ser, quase totalmente, ilegal (sendo possível nos casos em que a mulher corra sérios riscos de vida, incesto ou violação). Portanto, não se pode abortar de forma legal, logo não se pode ser medicamente assistido; os médicos podem recusar-se a tratar uma paciente (não prescrever a pílula, por exemplo); e as famílias não terão apoios extra em caso de terem uma criança com deficiência. É caso para dizer: #dość! (chega!), um dos hashtag mais partilhados nos últimos dias.

Mas… estava o Governo polaco preparado para a algazarra que se gerou? Não, não estava. As medidas da covid-19 não permitiam mais que cinco pessoas e o tema ainda não tinha gerado nenhuma mobilização consistente. Mas agora a história é outra: polacos e estrangeiros uniram-se em marchas intermináveis, todos de máscaras na cara e cartazes nas mãos e, ao largo da Europa, outras comunidades também decidiram lutar por esta causa.

Uma das minhas amigas escreve “to jest wojna” ("é uma guerra") enquanto desenha uma mulher com dois relâmpagos nos olhos. Nas redes sociais, não só o símbolo do relâmpago está vivo, como conta com várias mensagens associadas #mybodymychoice ("o meu corpo, a minha escolha") ou #wyroknakobiet” ("sentença sobre as mulheres"). A presença nas redes sociais é tão grande que a hashtag #strajkkobiet conta com mais 114 mil posts no Instagram e incentiva uma greve, esperando-se uma grande concentração de manifestantes.

Gritam “wypierdalaj PiS” ("dá o baza, PiS") sem parar e avançam ao longo das avenidas, sentido o “basta” nos gestos, na marcha, nas palavras, nos olhares. Querem e precisam que o Governo volte atrás. Gritam pelos direitos humanos, pelos direitos das mulheres, pelos direitos da educação sexual e pelos direitos de planeamento familiar e contracepção. Gritam por eles, pelas futuras gerações e pelas antigas. Gritam com o coração nas mãos. E eu grito também.

Uma das minhas alunas comenta: “Fomos ensinados a ser educados, a ouvir os mais velhos e a ter respeito pelas leis, mas agora basta, agora vou lutar.” Outra amiga diz-me: “Não quero ter filhos aqui, num país que não zela pelo nosso bem-estar.” Esta luta é de todos os que lutam para verem os seus direitos legalizados; é por um mundo que não devia permitir que mais mulheres morram por serem obrigadas a fazer abortos ilegais e que devia aceitar as escolhas dos outros e não impor a sua única vontade.

O Governo está a ficar sem controlo e já se fala em acção militar. No entanto, com a quantidade de mensagens que se regeneram a cada minuto, estar em casa não vai alterar este sentimento de revolta. Na rua ainda se grita “vamos abortar este Governo” e a dúvida impera: até quando vamos aguentar esta luta nas ruas? Até quando o Governo vai esperar para reverter o processo? Até quando vamos viver num país ultraconservador que usa a covid-19 como escudo para passar leis controversas? A resposta ainda não existe mas espero que não tarde e que venha dar razão às milhares de pessoas que estão lá fora a lutar.

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