A pandemia ameaça a democracia

O combate à pandemia não nos pode fazer esquecer que se a saúde é um bem fundamental, a liberdade e a democracia também o são.

Para muitos portugueses, com os olhos esbugalhados fixos na curva ascendente da pandemia, a discussão em torno do enquadramento legal das medidas de combate decretadas pelo Governo pode parecer uma réplica dos famosos debates teológicos que decorriam em Constantinopla enquanto os turcos otomanos faziam cair o Império Bizantino, e que cunhou a famosa expressão “discutir o sexo dos anjos”.

Esta posição só é possível porque somos mesmo um povo afortunado, no que à actual situação política diz respeito, e, talvez, numa frente menos positiva, porque temos alguma apetência para ser dóceis perante o poder do Estado, o que configura sempre alguma falta de cultura cívica.

A sorte que temos é a de vivermos numa democracia ocidental estabilizada quando, um pouco por todo o mundo, a pandemia tem feito recuar a qualidade das democracias e o respeito pelos direitos humanos. Segundo a Freedom House, um think tank norte-americano, são 80 os países que revelam uma deterioração nestas áreas desde o começo da pandemia, agravando uma tendência que já vinha de trás.

Em muitos casos, trata-se de ditaduras que aproveitam as medidas de emergência para perseguir de forma ainda mais severa os seus opositores ou para calar os protestos, já que a pandemia impede os ajuntamentos populares. Veja-se o caso de Hong Kong, onde o vírus não só acabou com as manifestações como as autoridades aproveitaram para adiar por um ano as eleições em que os contestatários esperavam fazer ouvir a sua voz. Mas também há democracias em que a pandemia trouxe problemas ao seu funcionamento, basta olhar para as eleições nos Estados Unidos.

 Já Portugal surgiu como um bom exemplo no mesmo relatório da Freedom House por causa da regularização da situação dos imigrantes com processos em curso, e não há indicações de que vamos piorar, mas para que isso continue a ser verdade, há que olhar pela legalidade.

Faz por isso bem o PCP ao lembrar que é preciso respeitar “os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos” e de colocar o Parlamento no centro das decisões sobre a possibilidade de uma nova declaração de estado de emergência, como tem vindo a ser aventado pelo Presidente da República. Como também fazem bem diversos juristas e constitucionalistas em chamar a atenção para que algumas medidas decretadas pelo Governo roçam a inconstitucionalidade e deviam ser objecto de reflexão, traduzida em legislação por parte do Parlamento.

O combate à pandemia não nos pode fazer esquecer que se a saúde é um bem fundamental, a liberdade e a democracia também o são.

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