Uma reflexão sobre moralidade fiscal com o OE como pano de fundo

Numa altura em que muito se fala de fiscalidade e Orçamento, seria bom libertar o debate político, doutrinário e judicial, da toxicidade do complexo moral fiscal.

No romance de Ian McEwan A Balada de Adam Henry, a propósito do dilema de um juiz entre a aplicação fria da lei e a pressão de uma consciência moral em constante devir (no caso, uma transfusão sanguínea de uma testemunha de Jeová), a protagonista, uma magistrada em ascensão, revisita, nas palavras de um tal Juiz Ward, um cânone fundamental da magistratura: “o tribunal ocupa-se da lei e não da moral”.

A frase pode parecer um truísmo, mas no domínio fiscal ela tem hoje uma atualidade e uma urgência que merecem uma reflexão. Vivemos num tempo de repolarização ideológica, superado que está o “fim da história”, em que os fundamentos primordiais dos impostos e do Estado fiscal parecem jazer soterrados sob o aluvião de novos combates políticos, de novas discussões meta-fiscais e, sobretudo, de novos códigos de moralidade fiscal gerados na última crise financeira. 

Hoje parecemos já nem saber onde estávamos quando o contrato social foi engendrado e como se começou a forjar o conceito de justiça fiscal. Fala-se muito do dever das empresas pagarem a sua “fair share of tax”, seja lá o que isso for (uma taxa efectiva de 5, 10, 20, 25 ou 30%?) ou da necessidade de aprofundar a justiça redistributiva, respondendo a direitos individuais fundamentais de quarta ou quinta geração, como sejam mais uma ciclovia, mais uma linha de metro em subutilização ou cinquenta secretarias de Estado. Misturam-se conceitos como evasão, elisão e fraude fiscal na mesma taça, juntam-se-lhes umas pitadas de pimenta terminológica como “esquemas” e “construções” e cozinha-se um regime de comunicação prévia de supostas “malfeitorias” fiscais ou sanções de violência inédita (até comparando com crimes de ofensa física) para assegurar a dita “fair share of tax”. Criam-se taxas e sobretaxas, contribuições e quejandas e mede-se “cargas fiscais” que já se aproximam da metade da riqueza criada, mas que ainda assim não espelham a proporção do verdadeiro rácio, o “esforço fiscal” de cada contribuinte. Sonha-se com o novo amanhã energético e dos milionários planos de infra-estruturas fundamentais há muitas décadas, e lança-se o país no território desconhecido de tecnologias que não produz e conhece, mas que pode sempre comprar e pagar em “suaves prestações”.

E como é que o discurso se sustenta? O suporte axiológico é sempre a desigualdade, que agora já não se combate com a igualdade de oportunidades mas sim com o quimérico suprimento de toda e qualquer necessidade pública por uma febre redistributiva crescente, devidamente anestesiada pela tecnicidade orçamental e fiscal. Já o suporte comunicacional é uma cartilha moral fiscal reciclada que cavalga a suposta superioridade moral daquela redistribuição crescente, dos novos direitos adquiridos e, acima de tudo, que fomenta uma culpa coletiva e individual na dicotomia entre um homo capitalisticus imperfeito e ganancioso e um Estado omnisciente e probo.  

Ora, é precisamente a carga ideológica dessa moral fiscal – que em Portugal se vê da direita à esquerda – que, finalmente, lhe confere o duplo padrão de responsabilidade máxima do contribuinte e mínima do Estado que a caracteriza. Este é recente, e sucede ao padrão de amoralidade fiscal do dealbar do século XXI: então, o “fair share of tax” era um darwinista “paga apenas se não puderes escapar” e a redistribuição era já um programa sem freio e fim (ilusão que gerou a dívida explosiva que hoje temos).

E, no entanto, excluindo os totalitaristas, os teóricos da justiça distributiva mais relevantes, de Rawls a Walzer, preservaram sempre uma esfera de liberdade intocada do indivíduo, exigindo como contraponto à invasão das outras esferas uma verdadeira e eficaz redistribuição, redutora da desigualdade de oportunidades. Este equilíbrio parece hoje uma miragem quando observamos de perto a evolução da justiça fiscal em Portugal e o comportamento do Estado com os seus recursos fiscais. Na verdade, haverá maior desequilíbrio do que um Estado cobrador de portagens que penhora contas bancárias por coimas 5 vezes superiores à taxa não paga e cujos tribunais demoram quatro anos a intimar a AT a pagar a um contribuinte um reembolso já fixado pela própria AT? Ou um Estado que cobra taxas progressivas até 53% mas não permite deduções razoáveis por despesas de saúde quando os seus maiores contribuintes substituem gastos de recursos do Estado por despesa privada? Ou um Estado que revoga um benefício fiscal à criação de emprego pelas empresas privadas ao mesmo tempo que aumenta o quadro de funcionários públicos? Ou um Estado que cobra Derramas Estaduais (alcançando taxas efetivas de quase 30%) a grandes empresas portuguesas e estrangeiras que criam valor em Portugal e é incapaz de criar um imposto sobre os serviços digitais, como os que vigoram em muitos outros países europeus, não tributando os gigantes da economia digital? Ou, enfim, um Estado que não poupou para a covid-19 ou cataclismos similares? Os exemplos são inesgotáveis.

Numa altura em que muito se fala de fiscalidade e Orçamento, e em que se discutem matérias com a relevância da flat tax ou outras, seria bom libertar o debate político, doutrinário e judicial, da toxicidade do complexo moral fiscal, abandonando a ficção de que vivemos na Dinamarca com o esforço fiscal dos americanos. Ou então reformemos profundamente o Estado. Ninguém quer que a Maria vá à fonte, mas também não lhe atire pedras o Estado do alto dos seus telhados de vidro…

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