Aprendemos muito pouco…

É imperioso apontar um caminho jurídico que não tem sido trilhado na mais correta resposta à pandemia sob a perspetiva da defesa das liberdades fundamentais.

Acredite o bom do leitor que não gostaria de escrever este artigo: não gostaria de o escrever porque, afinal, é imperioso apontar um caminho jurídico que não tem sido trilhado na mais correta resposta à pandemia sob a perspetiva da defesa das liberdades fundamentais.

Não está em causa, claro, a boa vontade dos governantes em pretenderem enfrentar a difícil situação sanitária, combate envolvido num árduo contexto de incerteza e desconhecimento científicos.

Mas não é menos certo que num Estado de Direito Democrático o Direito da Crise – qualquer que ele seja – não pode ser ignorado e, sobretudo, tem de ser insuflado por uma Constituição de Crise, ainda que não de fácil perceção e que sempre existirá.

Se, num primeiro momento, podia ser desculpável o atabalhoamento ou o excesso perante instrumentos de crise – constitucional e legal – não fadados para fazer face a tal pandemia, agora que passaram seis meses, essa tolerância diminuirá crescentemente.

Nem sequer houve falta de aviso: desde a procedência de diversos pedidos de habeas corpus até à aplicação mais “persuasiva” do que coercitiva de normas sancionatórias por parte das forças policiais, sem esquecer o fértil debate judicial e doutrinário a este respeito.

O que se vê agora às portas de uma nova vaga, de proporções indefinidas? Vê-se a manutenção, na sua essência, de um mesmo Direito de Crise, quando houve ocasião para corrigir as soluções que se relevaram inadequadas.

Indiscutivelmente que a Assembleia da República tem outras importantes matérias com que se ocupar, mas esta teria sido uma delas também, tratando-se da proteção das pessoas no cruzamento entre a liberdade e a segurança sanitária.

Ao nível constitucional, podia ter havido uma revisão constitucional cirúrgica para esclarecer dúvidas recorrentes, como a da necessidade da validação judicial das medidas de confinamento como evidente limitação da liberdade pessoal, não expressamente prevista no art. 27.º, n.º 3, da Constituição.

Assim como se considera lamentável que a Comissão Permanente da Assembleia da República continue sem ter competências de emergência, a qual podia ter reunido com rapidez e facilidade nos tempos mais agudos da pandemia, evitando-se o hábil acordo político-partidário – embora extra-jurídico-constitucional – de os partidos se fazerem representar pelo menor número de deputados.

Ao nível legal, não se quis assumir a criação de um autónomo estado de emergência sanitária, sendo, contudo, existentes elementos que ajudariam na sua construção a partir da Lei de Bases da Saúde e da Lei de Vigilância Sanitária.

Assistiu-se, porém, a uma incompreensível disparidade na atuação das autoridades de saúde, com comportamentos ziguezagueantes e até contraditórios, objeto, de resto, das mais variadas censuras, por uma caleidoscópica e atenta opinião pública política, económica, social e religiosa.

A criação deste estado de emergência sanitária propiciaria, além do mais, densificar as providências a adotar para prevenir o contágio da doença, as quais foram sendo decretadas avulsamente por decretos-leis e resoluções governamentais de dubitativa constitucionalidade.

Era necessário – como fez, por exemplo, Angola – revisitar a Lei de Bases da Proteção Civil para nela fazer sediar algumas dessas novas medidas na condição de não suporem a decretação prévia do estado de exceção constitucional.

Mais espinhoso foi ainda ver a dificuldade com que as autoridades regionais insulares contiveram esta doença, colocando-se na fronteira da inconstitucionalidade e da ilegalidade por uma inexplicável desconexão entre os sistemas nacionais e regionais de saúde e proteção civil.

Tudo isto para não falar de medidas felizmente anunciadas e não concretizadas em que era notória a impossibilidade da sua justificação, abrindo a porta a muitos oportunismos, como seria o caso da contratação pública, que já tem as ferramentas que permitem procedimentos urgentes.

Nas vésperas da tomada de mais duras medidas de combate à expansão da covid-19, ainda haverá tempo para aperfeiçoar as soluções que foram sendo aplicadas.

Os seis meses passados, apesar de tudo, não foram seis meses totalmente perdidos porque fizeram renascer na consciência dos Portugueses a centralidade da luta pelo Direito Justo que, por maior que seja o drama, jamais se poderá confundir com o não-Direito, que sempre se apresenta na elegante veste da necessidade e da urgência…

Professor catedrático e advogado

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico​

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