Ex-chefe dos Comandos não esclarece por que Abreu e Dylan não foram levados logo para o hospital

A transferência dos instruendos não carecia da sua autorização, afirmou o coronel Dores Moreira enquanto testemunha no julgamento dos 19 Comandos. No primeiro dia da prova, há quatro anos, teve “a noção de que Hugo Abreu” não estava em “situação urgente”.

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Miguel Manso

Muito pouca informação concreta resultou das mais de cinco horas de inquirição ao coronel Dores Moreira, que era o comandante do Regimento dos Comandos quando em Setembro de 2016 morreram dois instruendos do curso 127 por desidratação extrema e golpe de calor. 

As respostas ao colectivo de juízes no julgamento dos 19 Comandos, aos seus advogados e à procuradora do Ministério Público que requereu a inquirição do comandante enquanto testemunha, acabaram por não esclarecer que tipo de intervenção poderia este oficial de alta patente ter tido para prevenir os acontecimentos na Prova Zero deste curso. Hugo Abreu morreu no primeiro dia de instrução e Dylan da Silva foi transferido para o hospital onde morreu seis dias depois. 

Enquanto “responsável máximo do Regimento dos Comandos”, como o próprio coronel Dores Moreira afirmou esta quarta-feira, “mantenho o acompanhamento com este oficial superior”, disse referindo-se ao responsável da prova, tenente-coronel Mário Maia, um dos militares a serem julgados.

De acordo com o seu relato, desde que a Prova Zero começou na noite de 3 para 4 de Setembro até ser suspensa por volta das 16 horas do dia 4, Dores Moreira teve intervenções meramente circunstanciais e à distância.

Estando no Regimento na Carregueira quando a instrução decorria no Campo de Tiro Alcochete, haveria tacitamente margem para os seus oficiais no terreno assumirem o que fazer numa ou noutra situação.

E mesmo quando foi informado por volta das 18h pelo tenente-coronel Mário Maia que a prova tinha sido suspensa às 16h10 e pelo capitão-médico Miguel Domingues que Hugo Abreu e Dylan da Silva inspiravam cuidados e deveriam ser transferidos para o HFAR, o coronel diz não ter ficado com a certeza se estes iam ser transferidos ou se poderiam vir a ser transferidos.

Pelo que lhe foi transmitido entre as 18h e as 18h30 apenas se recorda que teve “a noção de que a situação de Hugo Abreu não era urgente”. O recruta de 20 anos teve uma paragem cardiorrespiratória às 20h30.

Nesse dia, depois do almoço, Dores Moreira tinha sido informado pelo oficial superior Mário Maia que a instrução decorria sem sobressaltos apesar do calor que se fazia sentir. E na noite anterior este também lhe transmitira que a chegada ao Campo de Tiro de Alcochete tinha decorrido dentro da normalidade, depois de na Carregueira ter ele próprio presidido à formatura dos 67 instruendos.

A pensar na missão da ONU

Dias antes, numa reunião preparatória, quis dar um especial incentivo aos instrutores deste curso já que estes instruendos seriam os futuros Comandos a integrar as duas unidades desta força especial destacadas para a missão da ONU na República Centro-Africana ainda nesse ano de 2016 ou no início de 2017. 

Já durante o curso, e quantos às decisões a serem tomadas no local pelo capitão-médico Miguel Domingues ou o tenente-coronel Mário Maia, Dores Moreira afirmou de forma evasiva que a autonomia de cada oficial superior se definia no momento e consoante a situação.

“Há acompanhamento nas situações urgentes ou emergentes. E há um determinado nível de decisão pelo oficial no local, que deve informar que a decisão foi tomada. Eu como comandante posso concordar ou não.” 

Questionado se existe orientação superior para evitar transferências para o HFAR (para eventualmente não se tornar público algo que corra mal nos cursos) Dores Moreira foi claro.

“Esse é um argumento clínico [o que preside à decisão]. Não há qualquer orientação para evitar transferências para o hospital de instruendos nas formações”, afirmou. 

“A instrução é para ser exigente porque o objectivo é salvar vidas humanas”, disse várias vezes numa referência ao treino para as missões internacionais. "Mas se porventura um instruendo tiver que ser transferido, deve sê-lo logo”, acrescentou. O objectivo é evitar que “uma hérnia ou uma qualquer maleita” não se agrave impedindo o militar de regressar à instrução.

É ao médico do curso (em qualquer curso) que compete transferir instruendos para o hospital, afirmou, repetindo que essa decisão não carece de autorização do comandante do regimento. 

Arguido noutro processo

O coronel Dores Moreira é arguido num processo-crime que corre no Tribunal da Relação, por suspeita de ter entregue ao Ministério Público que investigava este caso um Guião da Prova com indicação de uma quantidade de água a dar aos instruendos superior à quantidade efectivamente transmitida aos instrutores.

Isto teria sido feito alegadamente para isentar o seu comando de qualquer responsabilidade nas consequências trágicas que teve o racionamento da água neste curso. Porém ainda não houve decisão ou arquivamento desse processo autónomo, relacionado com este.

Nessa qualidade de arguido, podia ter escolhido não responder enquanto testemunha neste julgamento. Mas demonstrou disponibilidade quase total para o fazer, apenas não respondendo, por indicação do seu advogado, a raras perguntas que podiam colidir com a investigação de que é alvo no Tribunal da Relação.

No fim, porém, e depois de a juíza-presidente ter pedido, em diferentes momentos, para que não fugisse às perguntas, ficou por esclarecer por que os militares foram assistidos em condições precárias na enfermaria do Campo de Tiro de Alcochete quando podiam ter sido transferidos para o hospital.

Tanto mais que o capitão-médico Miguel Domingues “manifestava grande insistência quanto à necessidade” de o Exército investir em “mais equipamentos e mais meios” para as equipas sanitárias nestes cursos, como confirmou a própria testemunha.

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