Dia 113: os pais são mais jardineiros ou carpinteiros?

Aparentemente os agricultores têm de podar os pepinos para lhe dar a melhor forma. Se não o fizerem, os pepinos criam uma rama que não interessa e ficam com um sabor horrível. E aqui tem, numa explicação sucinta, a filosofia de educação mais valorizada na nossa sociedade.

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Os pais devem "compreender que a maior parte dos comportamentos são adequados à idade" @DESIGNER.SANDRAF

Querida Filha,

Se apanho a pessoa que inventou o ditado que diz “De pequenino se torce o pepino” torço-lhe o pescoço. De que valeu a minha geração de pais revoltar-se contra a ideia de que não se podia deixar nada escapar sem castigo e que os nossos filhos só nos respeitariam se não os deixássemos levantar cabelo, para vir agora a tua fazer dela bandeira.

Estive num colóquio, em Lisboa, da Fundação Pão de Açúcar/Auchan, na Fundação Calouste Gulbenkian — que bom são os encontros presenciais, mesmo que com mil cuidados! —, onde me confrontaram com o seguinte caso: um casal que considera fundamental que o filho de 3 anos fique sentado à mesa até ao final da refeição, sente-se desesperado com o facto de os avós permitirem que, em casa deles, o neto se levante antes da restante família ter terminado. Acreditam que os avós estão a minar a educação que querem dar à criança.

E é isto. Os pobres pais, e juro que não o digo com um pingo de ironia, estão atormentados com a ideia de que se não torcerem o menino de pequenino, daqui a 30 anos quando estiver sentado num almoço de negócios vai abandonar a mesa, deixando o chefe a falar sozinho, chefe que, obviamente, o despedirá no mesmo momento. Daí até “acabar debaixo da ponte”, como tu costumas dizer, será um passo. O pior é que, desta vez, são os avós o obstáculo a este caminho civilizacional que assenta na convicção de que foi a falta de regras e disciplinas que povoou o mundo de energúmenos. Avós que com a sua bondade e palermice, tidos aliás como sinónimos, vão estragar o plano.

Não sei se a minha resposta pareceu acintosa, mas o que disse ali foi mais ou menos isto:

  1. Por alguma razão em nossa casa as crianças comiam antes, para depois irem brincar, deixando-nos almoçar/jantar em paz (sempre relativa). Cá para mim é miragem imaginar que uma criança de 3 anos, 4 ou mesmo 5 que não esteja tristemente domesticada, consiga ficar à mesa uma refeição inteira. Uma ilusão que acaba ou com os pais a gastar aquele tempo precioso a dizer “Está quieto”, “Não mexas na faca”, sem disponibilidade para conversarem entre si ou com os outros adultos, ou a despacharem aquela “cena” o mais rapidamente possível para não acabarem por ter de dar o braço a torcer.
  2. Acredito que as regras em casa dos avós não têm de ser iguais às de casa dos pais, e que as crianças compreendem e aceitam perfeitamente que na dos avós mandam os avós, e na dos pais, mandam os pais. É claro que, inteligentes como são, vão tentar sempre explorar essa divergência a seu favor, dizendo “A avó deixa”, mas a resposta dos pais pode ser bastante linear: “Mas eu não!”.

Depois deitei um bocadinho de água na fervura, porque se esta questão é tão importante para os pais — embora suspeite que esconde outras mais profundas —, então o melhor é sentarem-se com os avós e procurarem chegar a um consenso. Evitando as bocas ou a chantagem.

Mas, Ana, aqui para nós, ponho-me no lugar dos avós confrontados com pais tão rígidos e assustados e tremo: às vezes é preciso mesmo muita paciência e estômago para assistir de fora aos nossos pobres pepinos a serem torcidos.

Beijos


Mãe,

Fui ver de onde vinha essa maldita expressão. Aparentemente os agricultores têm de podar os pepinos para lhe dar a melhor forma. Se não o fizerem, os pepinos criam uma rama que não interessa e ficam com um sabor horrível. E aqui tem, numa explicação sucinta, a filosofia de educação mais valorizada na nossa sociedade.

Posso constatar o óbvio? As crianças não são pepinos. E sabe como é que eu sei? Porque os pepinos nunca me acordam à noite e nunca me respondem torto! Ah, pensando melhor, se calhar foi porque alguém os torceu!!! Ahahah, afinal acredito no ditado!

Agora mais a sério ou pelo menos tão a sério, está mesmo na altura de nos libertarmos do colete-de-forças em que ditos como esses nos enfiaram. Lembra-se daquele livro espectacular da grande psicóloga do desenvolvimento infantil Alison Gopnik, com um título que diz tudo: O Jardineiro e o Carpinteiro? Conta como durante séculos se acreditou que as crianças eram como um bloco de madeira que para se transformar em alguma coisa bonita ou útil, precisava de ser esculpido. O que desejavam da obra final variava, mas todos comungavam da ideia de que caso os pais não “limassem as arestas”, os filhos não passariam de toscos pedaços de madeira. Simplesmente, o que a investigação na área da neurociência tem revelado é que nada disto é verdade.

Mãe, repare, desta vez não é uma questão de modas, é uma questão de estarmos na posse de mais informação científica que nos permite compreender que a infância tem características próprias, que existe um processo de desenvolvimento que é independente dos pais. Melhor ainda, Gopnik assegura que regra geral são os pais mais jardineiros e menos carpinteiros, os que adubam e cuidam mas deixam crescer sem demasiadas intromissões, aqueles que acabam por ter filhos mais equilibrados. Com uma vantagem enorme: gozaram bastante mais o facto de serem pais.

O mais cómico é que, se reparar bem, muitas das características que os pais abominam nos filhos pequenos e que passam horas e horas a “contrariar” são, depois e no contexto certo, endeusadas como os seus pontos mais fortes. O menino teimoso passou a ser persistente. O que estava sempre do contra, é agora assertivo, e por aí adiante. É claro que os pais carpinteiros gabam-se dos “resultados” como se fossem fruto do seu trabalho árduo e empenhado mas, sinceramente e sem querer desiludir ninguém, suspeito que (dentro da razoabilidade) se tivessem deixado passar uns gritos, umas saídas da mesa antes de tempo, as vezes em que não cumprimentaram os tios, e mesmo algumas respostas mais tortas, provavelmente os filhos teriam crescido e amadurecido igualmente bem, com a vantagem de terem gozado e preservado uma melhor relação entre todos. Podiam ter-se divertido mais, além de terem tido a oportunidade de acabar de ler o jornal acabado de comprar... Ou comido o almoço, sem indigestões. Mas, como a mãe diz, para muitos pais cada um desses episódios é encarado com uma derradeira oportunidade, e isso, além de ser mentira, estraga tudo...

O que me parece importante é que os pais entendam que o que isto não é a mesma coisa do que ser permissivo, negligente ou um “tudo é indiferente”, mas apenas compreender que a maior parte dos comportamentos são adequados à idade e que dando o exemplo e impondo os limites que são mesmo essenciais, não estamos a pôr em risco o futuro da humanidade. Acredito mesmo que as crianças, se tiverem a maturidade para o conseguir, vão sempre escolher o caminho “melhor” porque, ao contrário do que muitas pessoas pensam, é-lhes muito mais fácil e vantajoso cooperar, fazer parte, estar integrado, agradar aos pais e aos amigos, do que o oposto. Como também acredito que as coisas importantes, as que têm uma razão lógica, são compreendidas e assimiladas, independentemente de castigos ou prémios, e que por isso, mais cedo ou mais tarde, serão adoptadas por eles como uma coisa que lhes é útil e lhes facilita a vida. Veja lá como eu passei a apanhar toalhas do chão e a arrumar a cozinha quando vim viver para a minha própria casa? Quem diria!

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