Sem família, sem afecto: a vida num orfanato para rapazes com deficiência, na Moldova

No interior de um grande e velho edifício, em Orhei, na Moldova, reside um grupo de 200 rapazes com deficiência física e/ou cognitiva que cresceram sem pais, sem afecto e em exclusão social. The Neglected, do fotógrafo dinamarquês Mikkel Hørlyck, existe para lhes dar uma voz e uma cara. "Como nunca vemos estes rapazes, enquanto sociedade é como se não existissem. Mas existem." As imagens que captou na instituição, que será encerrada em 2026, podem impressionar.

Petru (23) passa quase todo o dia, todos os dias, de olhos fechados e com as mãos sobre os ouvidos. Na fotografia, Petru apanhava ar fresco no exterior da instituição. Subitamente, levantou-se, abriu os olhos e fitou o céu. ©Mikkel Hørlyck
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Petru (23) passa quase todo o dia, todos os dias, de olhos fechados e com as mãos sobre os ouvidos. Na fotografia, Petru apanhava ar fresco no exterior da instituição. Subitamente, levantou-se, abriu os olhos e fitou o céu. ©Mikkel Hørlyck

Não há um dia na vida do jovem fotógrafo dinamarquês Mikkel Hørlyck em que não se recorde dos 200 rapazes que conheceu, em 2016, numa instituição de acolhimento para rapazes, na Moldova. “Todos eles têm deficiência, física ou cognitiva”, relembra, em entrevista por videoconferência ao P3, a partir do Arhus, na Dinamarca. “Nunca hei-de esquecer a forma como comuniquei com eles só com o olhar e com gestos, sem partilhar uma só palavra.” Ou a dor “quase palpável” que pressentiu habitar o coração de cada um. “The Neglected é mais do um retrato do quotidiano na instituição; este trabalho é sobre a ausência de afecto, de amor, de atenção, que são tão necessários ao desenvolvimento humano", diz. Sobre a ausência de pais, de família, de raízes e sobre a marca profunda que essa ausência grava nos corações de quem foi deixado ao cuidado de estranhos. E sobre a falta de inclusão.

Os internos, que têm até 40 anos e cujos nomes foram alterados pelo fotógrafo para preservação da sua identidade, vivem num grande e velho edifício na periferia da cidade de Orhei, num dos países mais pobres da Europa, a Moldova. “A pobreza é a principal razão para o abandono destas crianças”, explica, bem como “o preconceito relativamente à deficiência, transtornos e doenças. Entre as crianças, há rapazes autistas, com síndrome de Down ou epilepsia. Praticamente nenhum tem qualquer contacto com o exterior. “As visitas são muito raras. Um dos momentos mais emotivos que vivi foi quando uma criança autista de 12 anos, o Marius, recebeu a visita do pai. Não foi o abraço entre eles que mais me tocou, mas sim a presença curiosa e triste de todos os outros rapazes, que nunca receberam ou receberão visitas.” O pai de Marius, Grigore, tem esclerose múltipla e a mãe sustenta toda a família, composta pelo marido e três filhos. “Foi por carência económica que entregaram o Marius à instituição. Não por falta de amor.” O fotógrafo conta que, no final dessa visita, muitos rapazes se dirigiram às assistentes perguntando quando iriam, também, receber os pais.

O fotógrafo de 29 anos passou três semanas no país e, ao todo, 18 dias no interior da instituição. O dia, descreve, começa com as assistentes – uma para cada um dos 18 grupos de 12 a 18 internos – a preparar o início do dia. Os grupos dirigem-se para a cantina, onde tomam a primeira refeição. “Pequeno-almoço, almoço, jantar. Por vezes, não sempre, lancham pão e leite.” A impressão que teve foi que os rapazes eram bem tratados pelas assistentes sociais. “A instituição tem poucos recursos humanos e financeiros. As assistentes, que são exclusivamente mulheres, são dedicadas e muito trabalhadoras. Dão muito de si aos rapazes e à instituição. O trabalho delas é muito duro e a falta de tempo faz com que não possam dedicar muita atenção a cada interno.”

Por esse motivo, a atenção que os rapazes receberam de Mikkel foi muito significante. “Reagiram muito à presença da câmara. Tornavam-se muito expressivos. Eu pertencia ao mundo exterior e eles queriam, claramente, mostrar-me coisas. Pareceu-me instintivo.” A carência afectiva era bem patente. “O Andrei é uma criança cega. Mas ele não parece cego. Estava sentado na sua cadeira de rodas e agarrou a minha mão. Com muita força.”

Crescer num grande edifício isolado dos centros urbanos e com grande concentração de internos não é o ambiente ideal. "As pessoas são influenciadas pelo ambiente onde vivem", explica o fotógrafo. "E eles vivem num ambiente de exclusão. Por esse motivo, o governo da Moldova tenciona encerrar a instituição em 2026. Os rapazes serão distribuídos por casas mais pequenas, no interior das vilas e aldeias do país."

Foi difícil para Mikkel fotografar aquele lugar, retratar aqueles rapazes. “O que mostrar? Como mostrar?” The Neglected não enfoca nas condições de vida dos internos, que o fotógrafo garante ter encontrado bem nutridos e asseados, mas sim na sua qualidade de vida, no que se passa no seu mundo interior. Nas fotografias que seleccionou, privilegiou aquelas que levantavam o véu sobre as suas mentes e emoções. Daí ser importante, para o dinamarquês, revelar as suas expressões, desvelar as miradas que dirigiam à câmara fotográfica – neste contexto, um símbolo do exterior que os rapazes olhavam com curiosidade, entusiasmo. “Procurei retratar uma camada mais psicológica porque a verdade, no fundo, está aí.”

Apesar de ter feito este projecto em 2016, só recentemente divulgou as imagens no jornal dinamarquês Politiken. “Tive um acidente que me causou problemas físicos, motores, e tive uma recuperação muito lenta. Só recentemente recuperei a 100%, momento em que pude, finalmente, organizar o trabalho e publicar.” Sentiu que tinha de o fazer, mesmo que já tivesse passado muito tempo. "Como nunca vemos estes rapazes, enquanto sociedade, é como se não existissem. Mas existem. É importante dar-lhes visibilidade porque eles não têm voz. É preciso que as pessoas compreendam estes lugares e que não os estigmatizem." O impacto, na Dinamarca, foi positivo, refere. "Gerou muita discussão, muitas mensagens. Creio que tocou os seus corações.”

Andrei fita a câmara, mas não a vê. É invisual.
Andrei fita a câmara, mas não a vê. É invisual. ©Mikkel Hørlyck
No grupo 3, há algum tumulto. Os rapazes tentam roubar os chapéus uns dos outros. Os rapazes do grupo 3 tratam por "mamã" a assistente social que cuida deles.
No grupo 3, há algum tumulto. Os rapazes tentam roubar os chapéus uns dos outros. Os rapazes do grupo 3 tratam por "mamã" a assistente social que cuida deles. ©Mikkel Hørlyck
Há um espectáculo num anfiteatro, fora da instituição. Devido aos cortes financeiros, os rapazes só assistem a espectáculos duas vezes por ano. Neste dia, assistiram à performance de um artista de circo.
Há um espectáculo num anfiteatro, fora da instituição. Devido aos cortes financeiros, os rapazes só assistem a espectáculos duas vezes por ano. Neste dia, assistiram à performance de um artista de circo. ©Mikkel Hørlyck
As assistentes acordam os rapazes das suas sestas para os vestirem, antes do jantar. Trabalham por turnos de 12 horas.
As assistentes acordam os rapazes das suas sestas para os vestirem, antes do jantar. Trabalham por turnos de 12 horas. ©Mikkel Hørlyck
Criança no interior da instituição.
Criança no interior da instituição. ©Mikkel Hørlyck
Depois do almoço, os rapazes dormem a sesta. As assistentes ajudam-nos a usar a casa de banho, a retirar a roupa e a entrar na cama. A instituição fica em silêncio, mesmo que alguns dos rapazes não consigam adormecer.
Depois do almoço, os rapazes dormem a sesta. As assistentes ajudam-nos a usar a casa de banho, a retirar a roupa e a entrar na cama. A instituição fica em silêncio, mesmo que alguns dos rapazes não consigam adormecer. ©Mikkel Hørlyck
Quase nenhum dos internos recebe visitas. Marius, de 12 anos, recebeu a visita do pai, que tem esclerose múltipla. Os dois abraçam-se.
Quase nenhum dos internos recebe visitas. Marius, de 12 anos, recebeu a visita do pai, que tem esclerose múltipla. Os dois abraçam-se. ©Mikkel Hørlyck
Durante o dia, entre as refeições, as sestas, os passeios no exterior, os rapazes permanecem na sala que é atribuída a cada grupo.
Durante o dia, entre as refeições, as sestas, os passeios no exterior, os rapazes permanecem na sala que é atribuída a cada grupo. ©Mikkel Hørlyck
Os utentes entreajudam-se durante as refeições.
Os utentes entreajudam-se durante as refeições. ©Mikkel Hørlyck
Os cortes no financiamento da instituição podem ter impacto ao nível do acompanhamento dos rapazes pelas assistentes sociais.
Os cortes no financiamento da instituição podem ter impacto ao nível do acompanhamento dos rapazes pelas assistentes sociais. ©Mikkel Hørlyck
Os rapazes do grupo 3 estão felizes com o regresso da "mamã", a sua assistente.
Os rapazes do grupo 3 estão felizes com o regresso da "mamã", a sua assistente. ©Mikkel Hørlyck
Max precisa de ajuda para quase tudo. Usa um colete de forças durante as refeições, para facilitar o trabalho das assistentes.
Max precisa de ajuda para quase tudo. Usa um colete de forças durante as refeições, para facilitar o trabalho das assistentes. ©Mikkel Hørlyck
O governo da Moldova irá encerrar a instituição em 2026. Os rapazes serão distribuídos por casas mais pequenas, no interior das vilas e aldeias do país.
O governo da Moldova irá encerrar a instituição em 2026. Os rapazes serão distribuídos por casas mais pequenas, no interior das vilas e aldeias do país. ©Mikkel Hørlyck