Uma carta aos deputados sobre o referendo da morte a pedido

Senhor Deputado: a realização deste referendo está nas suas mãos. Joga-se o exercício da democracia e a verdade da soberania popular.

Exmo. Senhor Deputado: esta sexta-feira, 23 de Outubro, será chamado a votar o projecto de resolução n.º 679/XIV (Propõe a realização de um referendo sobre a (des)penalização da morte a pedido).

O referido projecto de resolução teve a sua origem numa Iniciativa Popular de Referendo que foi assinada por 95.287 cidadãos portugueses. A sua subscrição pública (em papel e online) iniciou-se em 7 de Fevereiro e prolongou-se até dia 9 de Março (uma semana depois fomos para confinamento…). Não teria sido possível obter tão elevado número de assinaturas em apenas quatro semanas se o que é pedido (um referendo aos projectos-lei aprovados, na generalidade, no passado dia 20 de Fevereiro) não correspondesse a um sentimento profundo da sociedade portuguesa. Como, aliás, o confirmam as apenas quatro sondagens realizadas entre 2016 e 2020 (em que a percentagem em favor do referendo foi sempre superior à oposição ao mesmo).

As razões para esta adesão parecem estar no sentimento partilhado pelos portugueses de que os dois partidos com maior expressão eleitoral (81% dos mandatos) não se apresentaram nas últimas eleições com posição expressa sobre o assunto, nem o mesmo foi objecto de qualquer debate durante a campanha eleitoral. Ou seja, os eleitores foram privados de se pronunciar sobre a sua aceitação ou não das propostas de morte assistida. E por isso propõem o referendo.

Não porque não sejam os deputados aptos ou mandatados para legislar (aliás, deles depende que haja referendo e, depois deste, a concretização em lei do resultado do mesmo), mas porque, aquando da respectiva eleição, ninguém lhes perguntou, aos eleitores, numa matéria desta importância, qual o respectivo sentir. Daí que, na rua, recolhendo assinaturas, muitas vezes ouvimos a frase “olhe que eu sou a favor, mas acho que deve ser decidido por referendo”, ou então “olhe que eu sou contra e não acho bem que isto se pergunte, mas quero ser ouvido”.

Se atentarmos na história democrática portuguesa do instituto do referendo (os efectivamente realizados mais aqueles que foram objecto de iniciativa popular), vemos que este surgiu sempre ou à volta da questão da organização do Estado (regionalização), ou dos assuntos que se prendem com a instituição familiar (casamento gay, procriação medicamente assistida) ou com matérias atinentes ao art.º 24.º da Constituição (aborto e eutanásia).

Alguns de nós temos experiência de alguns dos processos referendários acima referidos. Percorremos o país de lés-a-lés e somos testemunhas da magnífica oportunidade de diálogo civil que são estas campanhas e como na sociedade portuguesa, de cada vez, cresceu o conhecimento pela população da temática subjacente aos referendos. Tal como por vezes um deputado invoca a sua consciência na decisão de um voto concreto, assim os eleitores o fazem em certas matérias, reivindicando e participando num referendo, deixando depois ao Parlamento a árdua tarefa de concretizar em lei o seu sentido maioritário.

Quando, em Fevereiro, lançámos a nossa campanha e no Parlamento se aprovaram os projectos de lei, as circunstâncias eram umas. Hoje, com a pandemia, são outras. Se havia então razões para o referendo, o ocorrido com a covid tornou-as mais fortes. A reflexão que então se exigia pede hoje ainda mais tempo. As prioridades mudaram ou tornaram-se ainda mais imperiosas. O referendo (que tem 180 dias para ser agendado desde que o Presidente da República aceda na sua convocação) oferece um espaço de reflexão que o actual processo legislativo em curso não consente e, até, o encontro e debate de novas e diferentes respostas e soluções, pelas diferentes posições, para os problemas de fundo que suscitaram a presente discussão.

Senhor Deputado: a realização deste referendo está nas suas mãos. Partilhamos consigo o sentimento de que este não é apenas um assunto mais e que na decisão do referendo não se joga a posição de fundo sobre a matéria (essa terá outros momentos próprios). Joga-se a liberdade dos eleitores portugueses e a sua no exercício do seu mandato. Joga-se o exercício da democracia e a verdade da soberania popular. Porque se é verdade que quando elegemos o fazemos para que, em algumas alturas, alguns decidam por todos, também o fazemos para que, em outras alturas, os que elegemos não decidam por nós.

Membro da Comissão Executiva da Iniciativa Popular de Referendo sobre a (des)penalização da morte a pedido

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