2. E se tudo muda...

E se tudo muda... o melhor será estar atento ao que “mexe” e muito bem ancorado sobre o que permanece. A ilusão da mudança desvia-nos do fundamental.

Vale a pena recuperar a ideia de Zygmunt Bauman (Liquid Modernity, 2000), expressa na expressão “a mudança é a única permanência e a incerteza a única certeza”, para servir de ponto de partida para este artigo.

Nunca, como nas últimas décadas, se falou e escreveu tanto sobre a mudança, ao ponto de se banalizar a ideia de que tudo muda e tudo é feito de mudança, como se nada permanecesse. Nos vários domínios do conhecimento e nas suas múltiplas narrativas, identificamos quatro conceitos que andam sempre relacionados: mudança, complexidade, incerteza e inovação. Estes quatro conceitos formam a moldura de um retrato dos nossos tempos. Mas nem por isso o retrato é mais fidedigno.

Ocorre-me a analogia do caçador na floresta que só tem olhos para tudo o que mexe, não se apercebendo da floresta que permanece viva, mas aparentemente inerte, ou da terra que a sustenta escondida pela folhagem e pelos galhos perdidos que os anos foram acumulando.

Estamos perante um problema de percepção: só olhamos para o que muda e esquecemo-nos do que persiste. Aparentemente, Bauman tem razão, mas esquece que é muito mais o que permanece, ou que muda muito lentamente, do que o que se transforma. Somos mais facilmente atraídos pelo ruído do que pelo silêncio.

Os processos de mudança social, na longa duração, não se desenvolvem sempre ao mesmo ritmo. Períodos há em que esses processos são mais acelerados, outros bem mais lentos. A vaga de fundo que se formou nos últimos 45 anos é marcada pela aceleração desses processos de mudança, envolvendo os movimentos sociais, as economias, as tecnologias, as instituições e as culturas. Felizes aqueles que, como nós, pudemos assistir e viver um dos períodos mais fascinantes da história da Humanidade. Só que o fascínio tem um reverso: insegurança, instabilidade, maior incapacidade em lidar com a incerteza e a contingência.

É o “mundo às avessas” para os que se espantam com o turbilhão que tanto poderá despertar os medos, como as mais radicais e revolucionárias ideias e movimentos sociais.

Alguns apressaram-se a anunciar o fim da modernidade cujos princípios moldaram as sociedades contemporâneas. Outros, menos precipitados, defenderam a tese de uma outra modernidade, de uma nova fase mais avançada de uma modernidade que se havia reconfigurado nas suas manifestações, mas que permanecia intacta nos seus fundamentos. Mais do que uma ruptura, assistimos a uma aceleração da mudança.

E se tudo muda... o que fazer? No particular domínio da governação e das políticas, como e por onde seguir?

O perfil mais elementar define o “vanguardista” que pretende acompanhar a mudança, entende-a como uma corrida em que não se pode “ficar para trás”, esforçando-se por integrar o “pelotão da frente”, transformando “ameaças em oportunidades” e repetindo ad nauseam os clichés da inovação, da ação “disruptiva”, da estratégia sem alternativa, da criatividade e do pensamento crítico, entre tantos outros.

Como se torna evidente, constrói-se uma retórica e um novo vocabulário que impressiona e contamina os mais incautos, mas que não passa disso mesmo. A atitude inovadora, ao não superar o déficit de conhecimento e reflexão, leva a que muitos queiram voltar a descobrir a pólvora. A maior parte do discurso político atual, perante a dificuldade em entender a mudança e em mobilizar conhecimento, não é mais do que retórica. Também, porque não há tempo para pensar, estudar e agir para além do imediato.

O perfil oposto é tipicamente português, o “resistente”: primeiro resiste, depois adapta-se defensivamente, mas sempre em perda. O “resistente” é conservacionista, explora e amplia as fragilidades dos processos, refugia-se nos impactos ambientais dos projetos, na falta de transparência das iniciativas, no fantasma da corrupção ou no emaranhado legislativo. É o melhor intérprete das teses da conspiração e o mais aberto às fake news. Medo, manha, inveja e denúncia completam o cadinho de emoções que desconfiam e rejeitam a mudança. Só que não as compreende, não as consegue explicar, remetendo-se ao negacionismo compulsivo.

O terceiro perfil é o de mais difícil afirmação, o “reformador”: os tempos e as modas não estão de feição a este perfil de conduta política, porque pretende ser racional onde dominam as emoções, reflexivo face à pressão para a ação, distintivo contra o mainstream, rigoroso e disciplinado em confronto com a flexibilidade e a desordem que dominam. O “reformador” anseia antecipar os acontecimentos mais imprevisíveis e planear a um prazo que ele não domina, mas tende a partir de diagnósticos rigorosos e a orientar-se por princípios de racionalidade que lhe permitem conter as margens de erro que não ignora.

Estes três perfis não esgotam os tipos ideais observáveis na cena política nacional e internacional, nem se confundem com este ou aquele líder, este ou aquele partido. Estão presentes na diversidade de contextos políticos identificáveis. Tendem a referenciar padrões de conduta face à mudança e à incerteza.

Este é o contexto mais favorável à emergência de um quarto tipo, o “demagogo”, que, combinando “vanguardismo” com “resistência”, ora acentua a sua dimensão mais progressista, ora mais conservadora, mas sempre mais populista e extremista.

E se tudo muda... o melhor será estar atento ao que “mexe” e muito bem ancorado sobre o que permanece. A ilusão da mudança desvia-nos do fundamental: os adquiridos civilizacionais do conhecimento e da cultura, da ciência e da percepção alargada do tempo, da história e dos valores fundamentais da Humanidade. Esses não mudam tanto quanto parece. O teorema de Pitágoras continua a ser verdadeiro ao fim de dois milénios e meio e nem por isso se tornou ultrapassado ou obsoleto. Porém, só uma minoria o conhece.

Segundo de uma série de dez textos de David Justino que publicaremos semanalmente, sempre às quintas-feiras, sobre os desafios que enfrentamos em várias áreas, em Portugal e no Mundo. Próximo artigo: “A Nova Era dos Extremos”

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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